Gabriel Mascaro antecipa o resultado da expansão da religião Evangélica como um modo de vida depois de substituir o Carnaval por uma imensa rave. O efeito perturbou-nos ao ponto de o procurar uma entrevista esclarecedora. Numa altura em que o filme estreia na nossa sala (a par de Ventos de Agosto, de 2014), oito meses depois de passar no festival de Berlim, surge e nossa conversa. Na verdade, o melhor filme desse ano, mesmo que se soubesse de antemão que não poderia concorrer ao Urso de Ouro por já ter sido apresentado nos festivais Sundance e Miami.
Podemos dizer que este filme tem o seu lado premonitório?
No fundo, o filme é mesmo uma premonição. Faz uma leitura do presente e pensa no futuro próximo de modo a refletir o próprio presente. Estamos a viver um momento de transformação da agenda religiosa, com uma influência cada vez maior do Estado.
“Deus acima de todos”, não é?
O discurso institucional do Presidente refere “o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” é muito claro. Trata-se de um discurso nacionalista que traz a religião atrelada como um projeto de Estado. E esse sentimento é percebido em outras esferas. Além de ser uma agenda da campanha do Bolsonaro no seu projeto de governo, é uma influência que se sente cada vez mais forte nas instituições.
Como perceber como se explica esta realidade na sociedade brasileira de hoje?
É difícil explicar, mas tem a ver com vários fenómenos que aconteceram no país. Podemos pensar como essa realidade cresceu e foi associada ao Evangelismo. Durante os governos de Lula e da Dilma, durante uns quinze anos, existiram várias agendas com melhorias sociais de política pública, em que as pessoas beneficiaram de rendas baixas. Foi também nessa altura que a Igreja cresceu, nomeadamente os Evangélicos. Portanto, essas melhorias sociais não foram associadas ao projeto de governo mas à Teoria da Prosperidade da Igreja.
‘Teoria da Prosperidade’, do que se trata na realidade?
A igreja Evangélica tem uma relação da Teoria da Prosperidade muito eficiente, muito forte. E que funciona. Algumas pessoas que não tinham uma organização financeira começam a tê-la pela primeira vez, quando começam a organizar as suas economias para pagar o dízimo. Foi assim que pela primeira vez começaram a separar o dinheiro para fazer algo. Assim criaram uma organização financeira. Isso tende a mudar a vida independentemente de questionar ou não o dízimo. Essa educação financeira passa a transformar a sua vida. Foi também uma Igreja que começou a trabalhar com a periferia, com as pessoas de baixa renda, nos presídios. Começou de uma forma muito silenciosa criando o seu projeto de fé que é também um projeto de poder. O filme tenta fazer alguns desvios desse futuro próximo com algumas alegorias e apropriações do que já consigo perceber como elemento real no Brasil de hoje.
É interessante como a ideia do amor e erotismo presente nos seus filmes anteriores combina com uma ideia religiosa. Como desenhou essa ligação?
No Brasil a representação da Igreja Evangélica na televisão é muito pobre, é caricata. Eu queria tentar fazer uma leitura do evangelismo muito contemporâneo, até porque essa é uma religião muito esperta, consegue apropriar-se de manifestações culturais, da cultura pop, da juventude. É muito eficiente. Algo que a igreja católica não conseguiu acompanhar. Até porque a religião Evangélica rompeu com a tradição da arte sacra, portanto não tem os ornamentos, não tem esses elementos. É uma sala simples, com cadeiras. E a palavra. Então eu quis pensar numa religião muito contemporânea num futuro próximo que iria incorporar práticas diferentes para radicalizar o seu projeto de fé. Por exemplo, o que agente imagina de uma prática de ‘swing’ que entendemos como uma coisa liberal e progressista. Na verdade é apropriada pelo evangelismo para radicalizar um projeto de manutenção da família cristã para fim de procriação.
Uma religião tão avançada que tem até um ‘drive-in’ para atender os seus fieis…
É verdade. A ideia é mostrar que essa religião é viva, pelo menos a alternativa do que entendemos de uma religião fechada num templo. Ela está viva, está num show, numa festa, está na esquina de casa, num drive in. “Se você não vai a Deus, Deus vai até você!”.
Como uma espécie de fast-food religioso?
Sim, o drive-in religioso vem como elemento dessa cultura de consumo da religião e que se reflete nas esferas mais quotidianas.
Como foi o envolvimento da Dita no filme?
Ele teve acesso a vários momentos da criação do roteiro e foi acompanhando pela evolução conceptual do filme através da escrita. Foi também mandando um feedback. Foi uma troca muito bonita de uma pessoa que assumiu o filme para ela. Você vê que o filme é ela. Foi muito corajosa e muito forte. É difícil porque conseguiu manter a seriedade mesmo quase quando entramos numa caricatura das coisas e a fé no filme. Você acredita que ela acredita no que esta a fazer. Isso é muito difícil.
A ideia de filmar o sexo nunca é fácil, mas é algo que sabe fazer muito bem. Desde logo como vimos no anterior Boi Néon. Qual foi aqui o seu ponto de partida para esse aflorar do erotismo?
É um filme sobre culpa e sobre controle biopolítico do corpo. É algo que vem na tradição do movimento japonês dos pink movies nos anos 70, paralelo à “porno chanchada” brasileira, no fundo na tradição do soft porn.
Sim, e em ambos os casos em sociedades algo repressivas.
Sim, então é curioso perceber a discussão política do erotismo como resposta a um estado repressor, a um contexto de cinema onde existe uma certa tensão. Foi natural reler essa tradição de filmes que lidam com o Estado, com a ficção científica e o erotismo.
Como acha que o filme irá ser recebido no Brasil?
Estou muito curioso (e ansioso) para ver como o filme dialoga com as pessoas. Imagino que possa gerar alguma polémica, mas espero que as pessoas possam ir de coração aberto para ver o Divino Amor. Foi um filme feito com muito carinho e sinceridade sobre um tema que nos preocupa. Não é só um filme sobre o Brasil, mas no que se passa em todo o mundo. O populismo, a geração nacionalista, sobre o conservadorismo.
Para além do corpo feminino, é curiosa a forma como coloca o corpo masculino no centro da questão.
Acho que se deve não só discutir como se representa o corpo feminino hoje no cinema, mas também como se dever discutir a apresentação do corpo masculino. Por exemplo, a própria Bíblia considera que a questão da infertilidade é uma questão da mulher, a infertilidade feminina, não se não se refere ao homem. Eu tento resignificar no filme o ponto de vista do homem.