“Quando a lenda se transforma em facto, publica-se a lenda”. A frase retirada do filme O Homem que Matou Liberty Valance, realizado por John Ford em 1962, serve frequentemente de refrão quando a ética jornalista é posta em causa. E não poderia ser mais ajustada a este documentário de Mark Landsman sobre os tentáculos do jornalismo tablóide e sensacionalista a partir do papel da publicação americana National Inquirer, considerada uma referência no género.
O problema torna-se ainda mais complexo quando esse suposto facto é adornado, melhorado, ou pura e simplesmente fabricado para vender. Ou até para manipular candidaturas políticas. Seguramente, nada que o liberalismo cavalgante americano ignore. Sobretudo quando se agregam detalhes em redor do possível (ainda que improvável) ‘impeachment’ de Donald Trump, ou na possível manipulação da candidatura de Jair Bolsonaro, quanto mais não seja para perceber (pelo menos para quem nunca pensou nisso) como pode ser manipulada a formação da opinião pública.
Hoje como nunca valerá a pena esclarecer e apurar as ligações perigosas entre os media e a política ou perceber de que forma o verdadeiro interesse da verdade se sobrepõe ao putativo relevo pelo conteúdo de uma histórica, de uma notícia, de uma imagem, de uma manchete ou tweet, independentemente de ser verdade ou não. Os exemplos visados são muitos. O.J. Simpson, Oprah Winfrey, Lady Dy, Elvis Presley, Donald Trump, George Bush, Arnold Schwarzenegger, you name it!
Aliás, essa busca ética pela verdade jornalística sempre teve o devido eco no cinema, com alguns casos mais recentes a motivarem nomeações e prémios Oscar, como O Caso Spotlight, de Tom McCarthy, vencedor do Óscar de Melhor Filme, em 2016, lançando luz sobre o escândalo de pedofilia encoberto pela igreja e alvo de uma investigação jornalística, e ainda The Post, no ano seguinte, com Steven Spielberg a oferecer uma adaptação da investigação do material que esteve na origem de O Homens do Presidente, de 1976, de Alan J. Pakula, sobre a origem do escândalo Watergate que levaria o Presidente Nixon a abdicar do cargo e uma referência nesta matéria.
Aliás, a história da ascensão fulgurante do National Inquirer parece servir de guião para a ascensão dos interesses menos nobres. Esta narrativa sensacionalista principia com a aquisição do jornal novaiorqueino Il Progresso, o jornal da comunidade italoamericana, e subvenciado pela mafia (ainda nos anos 30 e 40 haveria de divulgar propaganda fascista ), por Generoso Pope, a que o seu filho Generoso Pope Jr., viria a solidificar em 1929, com a compra do The New York Evening Inquirer, graças ao financiamento de William Raldolph Hearst, o magnata da imprensa que Orson Welles viria a importalizar no seu filme Citizen Kane, em 1941. Ora de Pope diz-se que “vendia bem a banha da cobra”. Sobretudo quando a linha editorial passou a seguir, por volta dos anos 50, o rasto de sangue fornecido pelas manchetes e fotos de acidentes de viação sangrentos e crimes macabros. Evoluiria depois para as notícias de glamour e inconfidências de vedetas, para abraçar ainda mais o público feminino e ganhar os pontos de venda nos supermercados. E daí para a estratosfera do jornalismo tabloide milionário, dos rumores não confirmados, dos delatores pagos a peso de ouro.
Fazem parte desse manancial de manchetes o escândalo da vida dupla de Bob Hope, considerado pelo povo americano como o “Mr. Nice Guy”, ou Bill Cosby, devidamente silenciados por dinheiro, para vingar o argumento de Pope “os americanos não querem saber disto”, conforme os jornalistas da altura que dão a cara para reescrever a verdade por detrás da lenda. Naturalmente, por isso mesmo também, o filme é necessariamente um desenrolar de talking heads, de ex-jornalistas do Inquirer, gente que viajou de jato privado a locais paradisíacos em busca de uma história, e que sempre colocou a verdade ‘melhorada’ acima dos factos. O caso mais gritante terá sido a obtenção da foto do cadáver de Elvis Presley no caixão, no seu enterro em 1977, proibida pelas autoridades, mas obtida através de um cheque a um familiar, propiciando uma edição com venda de mais de 6 milhões de unidades.
A tudo isto se pode somar a influência do Republicano Pope na agenda política, sobretudo depois da chegada de David Pecker, atual editor e que não aceitou participar no documentário. Desde logo com o encobrimento do escândalo Arnold Schwarzenegger para que este concorresse à câmara de L.A., o episódio Gary Hart que poderia ter vencido George Bush nas presidenciais e depois o seu filho W., e, claro, Trump, muito próximo de Pope desde o seu famoso reality show. Trump que passou a controlar as suas próprias histórias mas também as dos seus rivais. E assim recordamos agora as manchetes do Inquirer que mostravam a manchete que descreviam “How Trump Will Win” e como faria a “America great again” a par de imagens de poses negativas de Hillary Clinton a dizer que tinha apenas “seis meses de vida”, que estava dependente de drogas… Ou que o pai do candidato democrata Ted Cruz teria ligações com Lee Harvey Oswald, o assassino de JFK. Enfim. “Ele era o maior ‘tipster’ de todos”, recordam. “Telefonava a dar a notícias mais sensacionais”. “Venderam-nos um presidente tabloide”, dir-se-á
Pelo meio essa linha narrativa será discutida por quem a fez. O britânico Steve Coz, editor em chefe na altura, a reconhecer que liderou um veículo de propaganda, embora defendendo-se que “não é o meu problema” que as suas manchetes tenham “mudado o curso da história”, até porque, como defende, “o importante é termos conseguido a história”; seguramente numa linha bem diferente mas também Andrew Rosenthal, do New York Times, a questionar o que é verdadeiramente o jornalismo, e a separar águas daquilo que considera ser “corrupção”; ou Carl Berstein (um dos ‘homens do Presidente’) a alertar para o perigo de se nivelar por baixo a informação. Ou seja, para o perigo da lenda se tornar mais relevante que o próprio facto.