Foi na programação paralela da Berlinale que encontramos o melhor cinema. Desde logo nos Encontros, a nova secção destinada a procurar novas linguagens, iniciada logo com a pièce de résistence que constituem as mais de duas horas e meia de Malmkrog, do romeno Cristi Puiu. Mas antes ainda, com El Tango Del Viudo y su Espejo Deformante, de Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento, ou melhor, a remontagem que a viúva Sarmiento faz hoje do filme, original de 1967.
Comecemos por Ruiz. E por Sarmiento. Assim separados porque o que temos na verdade é um exercício formal, tão fascinante quando exigente (muitos espetadores não aguentaram o desafio), já que à recuperação do material de El Tango del Viudo, de 1967, para este reflexo em 2020, esse “espelho deformante”, um filme a revés que dialoga com o seu próprio passado. Um pouco como o famoso filme de Lumière de 1996 Demolição de um Muro, em que vemos também o reverso em continuidade visual. Desde logo, é fascinante esse efeito do tempo (afinal de contas um tema tão caro a Ruiz) bem como a história que levou a criação deste reverso ‘deformado’.
Reza a crónica que no inverno de 1967, o jovem Raúl Ruiz de 26 anos (falecido em 2011) levou debaixo do braço os rolos do seu primeiro filme El Tango del Viudo. O objetivo era criar uma dobragem já que esta fantasia fílmica sobre um poema de Pablo Neruda a uma amante que encara como um fantasma não tinha um minuto de som. Mas algo que nunca se chegou a confirmar, já que o dinheiro alcançado foi aplicado à conversão para 35mm, o que permitiria chegar a cinemas mais comerciais.
Esse material haveria de permanecer intocado até que a sua viúva Valeria Sarmiento pegou no material e tentou perceber os diálogos recorrendo à leitura dos lábios dos atores, pois não existia guião. O efeito é então algo tão fascinante quanto assustador, em que a cabeleira andante da amante se combina da melhor maneira nesta complexa sonoridade fantasmagórica e incompreensível. Literalmente, um filem que nos deixa os cabelos em pé.
Bem diferente é o tratamento do tempo em Malmkrog, pois aqui o cineasta romeno opera um fenómeno igualmente interessante de repensar o seu próprio cinema. Ao contrário do que fez do muito conseguido Sierranevada (prémio de melhor realização em Cannes 2016), em que a câmara se submete à observação das personagens, aqui opta por render-se ao poder da palavra que ocupa quase por completo a narrativa do filme de abertura dos Encontros, talvez a secção que pensa o cinema de uma forma mais profunda. Ou então, o que é bastante plausível, uma maior imersão nessa observação perspicaz – um tremendo rigor! – na forma em que recria o texto e a visão teológica e romântica do literário do filósofo russo Vladimir Soloviov (1853-1900), confidente de Dostoievsky e correspondente de Tolstoi, na obra War and Christianity: Three Conversations. Afinal de contas uma obra de extrema atualidade que nos permite hoje perceber a dinâmica do ser Europeu e até, porque não, as questões de moralidade que nos dominam hoje no tão quente tema da eutanásia.
O que temos então em Malmkrog? Usamos a expressão exercício de resistência, pois somos convidados, como em nenhum outro filme, a embrenhar-nos nos discursos profundos de forte valor filosófico – sobretudo na moralidade de Nietzsche e Platão -, embora sem perder a noção do cinema que ocupa os cerca de 60 planos que preenchem estas quase quatro horas de ruminação intelectual. Ao longo de meia dúzia de capítulos sugeridos às diferentes personagens da aristocracia russa e militar entregam-se a desenvolver teorias sobre a origem moral do Bem e do Mal, sobre a vida e a morte, ou a origem do Cristianismo e do Anticristo.
Não será para todos, evidentemente, embora este luxuosíssimo exercício de cinema mereça sobretudo a atenção que merece.