Quién lo Impide do espanhol Jonás Trueba conquistou a crítica em San Sebastian. Mas sentiu-se também atraído por Portugal e pelo cinema da Rita Azevedo Gomes.
Foram estas as palavras proferidas pelo cineasta de 39 anos durante a nossa entrevista, pouco depois de conhecer a preferência da imprensa espanhola, e a escassas horas de receber os dois outros galardões.
Sim, Quién lo Impide não ganhou a Concha de Ouro mas foi o filme evento da 69ª edição do Festival de San Sebastian. E este pode mesmo ser encarado como um grito punk de uma geração demasiado marcada pelas crises, daqueles que chegam agora à maioridade (e votam pela primeira vez!). Partilha de um projecto de cinema em construção muito físico e ousado, com quase quatro horas de duração (incluindo dois intervalos de cinco minutos) desenvolvido por Trueba e um grupo de jovens da geração século XXI ao longo de cinco anos, captando as suas ansiedades, frustrações e sonhos, mas também novas ideias de cinema que se foram incorporando durante a distância da pandemia. Apesar de envolver vários adolescentes madrilenos, o filme incluir alguns momentos de forte ligação portuguesa e ao cinema português. Algo que reforçou a intenção de conversar com uma das mais interessantes vozes do novo cinema espanhol.
Numa das sequências um casal de adolescentes atravessa numa canoa o curto riacho que separa Cheles, no distrito de Badajoz, de Portugal. É assim em solo luso que uma cena de um primeiro beijo motivou o comentário acima de Jonás Trueba, filho do também cineasta Fernando Trueba. Bem como da referência que é feita ao segundo filme de Rita Azevedo Gomes, Frágil como o Mundo (2001, no fundo, o ano de nascimento de muitos destes miúdos).
Este foi até um filme que começa por não ser sequer um filme, mas que se foi organizando, criando a sua própria arquitetura interior, a sua orgânica, Como algo feito em conjunto. É isso que seduz e nos permite acreditar num cinema de presente com futuro.
Este filme nasceu associado a algum projeto de desenvolvimento?
Não, nós começamos a filmar em 2016 sem nenhum plano ou meta. Sem nenhum tipo de obrigação.
Algo haveria, não?
Não, era só a vontade de estar juntos, de partilhar…
Mas estes eram jovens que já conhecias?
Sim, conhecia a Candela e o Pablo, desde o filme La Reconquista, que estreamos aqui em 2016.
Portanto, antes de La Virgen de Agosto, quando nos encontramos em Karlovy Vary numa outra entrevista.
Sim, começamos muito antes. Esse filme A Reconquista foi muito definidora. Quando terminei fiquei um pouco melancólico, porque senti que não tinha aproveitado bem os jovens que trabalharam no filme. Tinha criado com eles uma relação muito boa que não estava concluída. Além disso, eu tinha imposto uma personagem adolescente que estava mais perto de mim do que deles. Por isso, senti que tinha de fazer algo ao contrário. Era colocar-me ao serviço da adolescência deles, da juventude deles. Esse foi o princípio de tudo. Era um desejo forte de continuar a filmá-los, de continuar a fazer cinema com eles, mas de outra maneira. De uma forma mais relaxada, mais tranquilo. Apenas comigo e a câmara e eles. A partir daí começaram a surgir outros jovens. E eu comecei a ir a outros centros escolares buscando outros jovens, conversando com outros jovens.
E assim o filme foi ganhando o seu corpo.
Sim, isso. Foi importante para mim que o mais bonito foi não ter a consciência de que estava a fazer um filme. Era antes um processo vital, um processo cinematográfico. Por isso é verdade, para responder à tua pergunta, já tínhamos dois anos de rodagem, embora sem saber que forma esse material iria tomar. Foi então que decidi começar a mostrar o material em diferentes estados de montagem. E gerei diferentes tipos de edição…
Como um cinema em construção.
Sim, como um filme em marcha. Gostei dessa ideia de trabalhar em conjunto com um filme aberto, vivo. Foi então que fizemos algumas hipóteses de montagem que começavam sempre com um plano fixo que dizia que “o material que se vai mostrar pertence a um projeto mais amplo e um desenvolvimento que se chama ‘Quién lo Impide’.
De onde veio essa ideia de formular a pergunta: quem o impede?”
‘Quén lo impide’ vem de um tema musical, de um amigo querido, de um músico que se chamava Rafael Berrio (falecido em março de 2020) e esse era o nome de uma canção sobre a juventude. Sobre a adolescência, que gostava muito. O título inspirou-me porque significava uma nova maneira de entender a criação.
Sim, dizer que estava tudo aberto…
Sim tudo aberto. Ninguém me impede. Também é uma maneira de trabalhar. Por vezes é mais importante a maneira de trabalhar, o processo, a filosofia do trabalho que a própria narrativa do filme.
Por isso pergunto: era mais importante isto que estás a dizer enquadrado dentro do teu próprio processo, como cineasta, ou como essa reflexão da tua própria juventude ou da juventude destes rapazes e raparigas?
Eu penso que os jovens de hoje não serão tão diferentes dos jovens da minha geração. Há, claro, matizes e circunstâncias diferentes, mas senti muita afinidade com eles. Uma verdadeira amizade e carinho. Considero-os meus amigos. E eles acho que pensam o mesmo. Apesar de ter o dobro da idade deles. Foi fazer agora 40 anos e eles estão a fazer vinte. Então é uma relação curiosa. Não sei se respondo bem ao que perguntavas…
Sim, mas relacionava também isso com o teu processo de fazer cinema. Sentiste essa necessidade?
Senti essa necessidade de pegar numa câmara e passar tempo a filmá-los.
Sim, quem te impede de o fazer?…
Exato, quem me impediria? (risos) Até porque o filme não tem nenhum modo de financiamento , não tenho de prestar contas a ninguém. Posso trabalhar tranquilo. Para mim é importante pensar os meus filmes como espaços. Quase como um contentor onde cabem coisas que eu gosto. Há já algum tempo que tinha a ilusão de fazer um filme vivo, como uma experiência. Antes mesmo deste filme tinha a concepção da ideia do cinema como casa, um espaço onde partilhas coisas que gostas. Penso mais assim os seus filmes do que como histórias. Nesse caso, a ideia é muito forte. É algo onde podem entrar muitas coisas: testemunhos, registos, o documental, a ficção, o ensaio, dúvidas, mudanças… E depois de acumular muitas coisas e fazer essas montagens aproximadas, acabo por encontrar uma forma definitiva de filme. Mas isto só me aconteceu quatro ou cinco anos depois de começar. Nesse caso, procurei que a montagem fosse muito rigorosa com o processo, com momentos cronológicos. Ao mesmo tempo que não queria perder ao longo desse processo todas as dúvidas que tinha, todo o processo.
É até possível contemplar algo que não estava previsto, como esta pandemia, que obriga a recursos diferentes, como a comunicação via zoom, que podem também ser encarados como recursos novos de linguagem. Como foi que incorporaram este momento particular, com o confinamento, neste processo? Algo que acaba mesmo por influenciar as relações entre as pessoas e o que vais mostrar em imagem.
A crise da pandemia do coronavírus é, de novo, a realidade. Uma realidade que vem a dar uma nova forma ao cinema. Quando trabalhamos com a realidade acabamos condicionados por ela. E esse foi um golpe da realidade. Algo que recebemos todos. O filme também recebeu esse golpe. O filme aceita esse golpe e encontra também um sentido com esse golpe. Acho que de alguma forma me ajuda porque ajuda a definir esta crise, ajuda a definir esta geração de jovens. Muitas coisas mudaram no mundo, mas esta geração de jovens nascidos no século XXI vão ser moldados, para o bem e para o mal. É uma crise que chega quando estão atingir a maioridade, muitos votam pela primeira vez nas eleições, outros estão a entrar na universidade, outros a tentar um primeiro trabalho. E muitos deles deparam-se com novos problemas para os quais não estavam preparados. Tudo isso vai condicionar a sua vida. Então o filme acaba por tentar mostrar isso de alguma forma.
Temos de falar de algo que tem a ver com a realidade, mas também com a ficção. E é algo que me toca particularmente, que é a ideia de Portugal que vemos no filme. Por um lado, um local que nos surge como um sonho, como elemento de ficção. Mas também uma ideia que é de cinema, com a inclusão do filme da Rita (Azevedo Gomes). Como foi que isso se passou?
Como muitas coisas neste filme, foi algo que teve a ver com o acaso. Ou talvez um acaso que eu busco. Eu gosto imenso do cinema da Rita. Por acaso tinha descoberto o primeiro filme dela, Frágil como o Mundo, na filmoteca espanhola. E isto aconteceu durante um momento do processo Quién lo Impide. Foi ver o filme com a Candela e outros amigos. E gostamos imenso do filme. Uns meses depois estávamos a pensar numa sequência em que eles os dois vão ao cinema. E ao pensarmos no filme que iriam ver, que teria de ser um título no catálogo atual da Filmoteca Espanhola. Quando fui ver o programa desse mês, não voltaram a programar esse filme, Frágil como o Mundo. Algo que é muito raro. Em Espanha o filme não tinha sido visto. Isso pareceu-me uma coincidência feliz. Fomos então recriar a emoção que nos produzira este filme alguns meses antes. É bizarro porque o filme nunca fora projectado em Espanha e, de repente, passou duas vezes no mesmo ano. Isto porque fizeram um ciclo à obra da Rita Azevedo Gomes. Foi muito bonito porque tínhamos acabado de filmar em Cheles, essa povoação de Badajoz, em que vão por alguns momentos à terra Portuguesa de canoa.
Devo dizer que considero esse um dos momentos mais belos de todo o filme. Um momento quase onírico que nos transporta para um sonho, seguramente algo que desafia a realidade
Sim, concordo absolutamente. Para mim também como um sonho, um espaço romântico por excelência. É muito bonito. É também a relação de admiração com o cinema português, de se aproximar de uma magia, de sonho que passa pela cultura portuguesa. Pelo menos, como eu a entendo. Para mim, também é um dos momentos mais felizes de todas as filmagens de Quién lo Impide, mas também de toda a minha vida como cineasta. Esse beijo na terra de Portugal. Mesmo que o filme fosse um desastre, se tivesse essa cena eu já ficava feliz.
Tratando-se de um filme que olha tanto para o presente “aqui e agora”, não será também um filme que observa o seu próprio futuro? No sentido das mudanças que se operam nestes jovens. E mesmo no teu próprio cinema. Como vês esta ideia do teu próprio futuro, do futuro do cinema?
O futuro do cinema é sempre algo complicado de pensar. Creio que todos os cineastas temos de estar preocupados e alerta com o que se passa nas salas de cinema. Porque para mim a experiência da sala de cinema continua a ser muito importante. Por exemplo, este filme é longo, mas foi pensado como uma experiência física para o espectador. Até porque alguns dos meus melhores momentos como espectador foram passados em salas a ver filmes que, por vezes, são muito longos, e dão-nos uma experiência diferente. Nesse sentido, preocupa-me a ideia de que as salas possam desaparecer ou reduzir-se muito.
Ou que se vejam os filmes em casa, em streaming…
Sim, isso para mim é muito grave. Isso acaba com a sensação de ver um filme tal como ela foi concebida. Alguém que está em sua casa e decide com um comando o funcionamento de um filme, e que pode condicionar a sua projeção, iluminação, velocidade, tudo. Essa ação é incomparavelmente pior do que a de decidir sair de casa, apanhar o metro, o autocarro, caminhar, chegar a uma sala de cinema e comprar uma entrada para um filme concreto. Esse gesto significa uma aposta de fé muito clara para um filme. Isso não existe quando estás em casa a ver em streaming. Eu sou idealista e acho que vão existir sempre pessoas como nós que vão assistir na sala, que vão abrir uma nova sala de cinema. Pelo menos quero acreditar nisso.
Para terminar, e pelo que estamos a dizer, como vês esta geração das pessoas que estão identificadas no teu filme?
Falei muito com eles. Acho que a situação deles é muito complicada. Até porque viveram logo a crise de 2008, portanto o seu crescimento foi condicionado, em crise. Agora, quando chegam à maioridade, encontram outra crise. Quero acreditar que vão encontrar uma maneira de se definir, de fazer da necessidade virtude. Mas pensar que é uma geração que vai ter de pensar muito o mundo. Que identifique claramente o que não está bem. E que terá mesmo forçado a mudar algumas coisas. Acho que têm essa força. Que podem fazer.
Pois, quem os impede?!…
Claro, sim. Pode haver impedimentos. Por vezes é a própria realidade que nos impede. A crise, os vírus. Vão ter problemas. A questão é encontrar, serpentear, esquivar os obstáculos, os problemas, conseguir encontrar coisas. A mim também que aconteceu começar a fazer filmes quando começou a crise de 2008. Por isso, durante esses anos fiz filmes possibilistas, muitas vezes, com muito pouco orçamento. Acredito muito que a adversidade temos de criar uma reação. Temos de ser muito conscientes em saber o que existe e o que não existe. E construir a partir do que não há.
Como definirias este filme?
Bom, para mim é um filme que partilha muitos momentos. É um espaço de partilha de sensações, emoções, ideias, inquietudes, dúvidas. Mas também é um filme idealista e tranquilizador. Em que vemos que os seres humanos quando se juntam aos poucos constroem ideias. Aparecem ideias. Aparecem emoções, aparece movimento.
PALMARÉS 69º FESTIVAL DE SAN SEBASTIAN
Concha de Ouro para ‘Crai Nou (Blue Moon)’, de Alina Grigore.
Prémio Especial do Júri: ‘Earwig’, de Lucile Hadzihalilovic.
Concha de Prata à melhor realização: Tea Lindeburg, por ‘As in Heaven’.
Melhor interpretação protagonista: ex aequo para Flora Ofelia Hofmann LIndahl por ‘As in Heaven’ e Jessica Chastain por ‘The Eyes of Tammy Faye’.
Mejor interpretação de secundária: elenco de ‘Quién lo impide’.
Mejor argumento: Terence Davies, por ‘Benediction’.
Mejor fotografía: Claire Mathon, por ‘Enquête sur un scandale d’état’.
Premio FIPRESCI: ‘Quién lo impide’, de Jonás Trueba.
Premio do público: ‘Petit Maman’, de Céline Sciamma.
Premio Horizontes: ‘Noche de fuego’, de Tatiana Huezo.
Premio Novos Realizadores: ‘Nich’ya’, de Lena Lanskih.
Premio Zabaltegi / Tabakalera: ‘Vortex’, de Gaspar Noé.