O jardim do Palácio Catete, no Rio de Janeiro, outrora residência presidencial, antes da mudança da capital federal para Brasília, deu lugar ao Museu da República e foi assim devolvido ao povo. É nesse local que uma assembleia de gente sem idade se reúne em redor de 29 cadeiras de plástico branco, cuidadosamente dispostas em círculo, e em que a serenata romântica – leia-se seresta – se institui como palavra de ordem. Pouco a pouco, ao cair da tarde, lá vão chegando estas criaturas, músicos e cantores entre os 80 e 100 anos, comungando uma paixão secular por velhos sambas e músicas românticas que encapsulam a memória e o património cultural do povo brasileiro.
Foi este o cenário que Sérgio Tréfaut abraçou no seu regresso a casa, quarenta anos depois, ao sentir que o seu povo estava a perder a democracia. De certa forma, em busca de um certo ‘paraíso’ da sua própria memória, aqui embalado pela doce melancolia seresteira. Tal significado acabaria prolongado pelo testemunho da sua equipa mínima com a pandemia do Covid-19, confiando-lhe a inesperada missão de cristalizar momentos únicos de uma geração inteira prestes a perder a voz e desaparecer.
Mas voltemos às cadeiras e aos seus ocupantes idosos que se levantam, tantas vezes a custo, para a partilha da emoção seresteira, ou seja, a tradição da canção popular. São estas serenatas que se sucedem neste precioso e único documento musical que capta um ‘aqui e agora’ que deixou de ser para muitos dos músicos que pereceram vítimas num dos países mais afectados pelo Covid-19 (e a quem o filme é dedicado). Acaba por ser também esse lado inesperado que confere ao filme essa dimensão ímpar. Ainda que a forma carinhosa como a câmara de Tréfaut se intromete nessa serenata transmita a este musical uma nota de extrema dignidade.
É aliás esse olhar de Tréfaut sobre o despojamento do outro, sobretudo naquilo que tem de mais identitário, que pode ser encarado como um prolongamento observacional dos novos emigrantes da cidade de Lisboa, oferecido no documentário Lisboetas (2004), ou o realismo despido de Raiva (2018), embora totalmente envolvido pelo lamento romântico musical, numa analogia que serve na perfeição a intensidade da alma do cante alentejano em Alentejo, Alentejo (2014). Mesmo que se sinta latente o grito político contra um regime político que se desinteressou pela cultura e a alma do povo brasileiro. É neste gesto de cinema que se inscreve, afinal de contas, este Paraíso, de onde não está isenta a ideia de um cinema como forma de luta, como acto de resistência.
Foi no encerramento da recente edição do IndieLisboa que descobrimos Paraíso, justamente num certame em que o cineasta tantas vezes participou (bem como o DocLisboa, que chegou a dirigir) e em que ganhou diversos prémios. Mas antes, uma hora antes da apresentação de Paraíso, na Culturgest, era o mesmo Sérgio Tréfaut que marcava presença na Cinemateca Portuguesa, solidarizando-se na vigília organizada em redor das consequências do incêndio que destruiu grande parte do arquivo fílmico da Cinemateca Brasileira e impediu os seus funcionários de lá entrar. Tréfaut terá mesmo um projecto denominado Incêndio, que deverá debruçar-se sobre essa tragédia. Fiquemos então entre o grito “fora Bolsonaro!”, proferido na Cinemateca, e a candura musical de uma última serenata antes de chegar ao paraíso.