A 13ª edição do Festival Lumière (de 9 a 17 de Outubro) consagrou uma atenção ao olhar feminino focado em quatro cineastas: Jane Campion, Kinuyo Tanaka, Ida Lupino e Bette Gordon. Será isto o gaze faminino?
“Une affaire d’âme, une affaire humaine”, como quem diz, uma questão de alma, uma questão de humanidade. Pelo menos é isso que nos sugere o catálogo do festival a propósito do cinema de Jane Campion, a australiana nascida na Nova Zelândia, galardoada deste ano com o Prémio Lumière e merecedora da retrospetiva sua obra em Lyon. Em si, a sugestão deste ‘affaire d’âme’ é suficientemente potente para despoletar, sem grande esforço, um prolongamento ao longo do curto, mas tão vigoroso, trabalho de realização da japonesa Kinuyo Tanaka.
A estas duas cineastas – e figuras centrais do programa deste ano do Festival Lumière – poderíamos até juntar o nome de Ida Lupino, uma britânica muito mais conhecida pelo seu trabalho nos EUA, um outro caso notável de uma actriz que procurou sublinhar e defender verdadeiras causas femininas atrás da câmara, isto na América puritana do início dos anos 50. Desde logo pela seleção do seu filme Hard, Fast and Beautiful (1951), o quarto trabalho de realização de Lupino, para integrar a História Permanente das Mulheres Cineastas. Até porque complementado pelo elucidativo documentário Gentlemen and Miss Lupino.
Se é verdade por aqui podemos especular sobre as diversas facetas do olhar (da câmara e não só) feminino (o tal gaze). Por um lado, a proximidade de Campion à angst feminina num país das antípodas, por vezes, longe demais; algo que se tempera de alguma forma com a candura irreverente de Kinuyo (há inevitavelmente zonas de comunhão). Só que os pontos de contacto e coincidências tornam-se bem mais prementes quando aproximamos o percurso da americana (nascida em Inglaterra) Ida Lupino com a japonesa Kinuyo Tanaka, num programa que apoiado pela distribuidora Carlotta Films, confirmando a estreia e uma edição em DVD deste conjunto de filmes em cópias restauradas. Apesar de todas as diferenças e distâncias geográficas, culturais, estéticas, subsiste uma tremenda comunhão de intervenção social, de afirmação do ponto de vista feminino e as suas urgências. Tudo isto se passando num período idêntico – o início dos anos 50, portanto após o trauma do pós-guerra, e em plena arena de um modo de ser em que a mulher arriscava um papel meramente decorativo. O american way of life burguês que não será tão diferente com o rigoroso e patriarcal esquema familiar nipónico, de resto muito influenciado por este, desde logo, pelo tempo de ocupação territorial do pós-guerra e a imposição do modelo industrial de cinema. Uma outra curiosidade que aproxima Tanaka e Lupino, além da atitude irreverente feminista, é o facto de terem ambas feito seis filmes, ao longos dos anos 50 e início dos 60.
Quase três décadas mais tarde, seguramente que Bette Gordon não trará respostas, apesar de nos oferecer em Variety, de 1983, o a ênfase do olhar feminino diante da pornografia. Um restauro do filme que a trouxe a Lyon, acompanhada da fotógrafa (e também actriz no filme) Nan Goldin, para apresentação do filme e da exposição numa sessão em que tivemos oportunidade de assistir. É este tremendo jogo de olhares que merece ser explorado. Talvez para, de uma vez por todas, ir além do ligeiro preconceito do cinema de género. Foi em Lyon que estes caminhos se cruzaram.
Jane Campion, talvez o nome mais sonante do Lumière (a cabeça do cartaz), é também a cineasta que dispensa menos apresentações, mas cuja obra mantém ainda o vigor dos retratos profundamente humanos que o ecrã devolveu. Seja a curta Peel – An exercise in discipline (1982) – um dos quatro filmes que Campion leva a Cannes (os outros três foram Two Friends (1986), uma primeira longa para televisão, A Girl’s Own Story (1984) e Passionless Moments (1983) Un Certain Regard, todos apresentados, como um mini showcase, na secção Un Certain Regard), edição de 1986 (curiosamente, com Sydney Pollack, como presidente do júri, ele que foi um dos homenageados este ano também em Lyon), acabando por vencer a Palma de Ouro pela curta Peel; seja o seu filme mais recente, The Power of the Dog, apresentado este ano no festival em Veneza (onde viria a ganhar o prémio de realização), e que tem motivado um circuito de presenças (e retrospectivas da sua obra) em diversos festivais. Depois de San Sebastian, passando por Lyon, e em breve no LEFFEST, em Lisboa (entre 10 e 21 de Novembro). É um regresso ao terreno, ao oeste (neste caso, a paisagem neo-zelandesa a fazer de oeste americano), mas também à pulsão interior. Apesar de ter como protagonista, pela primeira vez, um homem (Benedict Cumberbatch) a agitar a ação, apesar de se perceber sempre a proximidade do ponto de vista feminino, tanto da personagem bem desenhada de Kirsten Dunst, e, claro, a da cineasta.
Talvez seja até mesmo este o filme que liga uma carreira que levava já uma interrupção de mais de uma década, depois de Bright Star (2009), apesar da experiência televisiva (Top of the Lake). Voltemos então uma vez mais à ‘alma’, seguramente a alma de rebeldia feminina, que partilha afinidades várias com as adolescentes de Two Friends (1986), seguramente, com a estranheza disfuncional da banalidade familiar de Sweetie (1989), de alguma forma próxima do territírio Lynchiano, e, naturalmente, prolongado através das personagens criadas pela pena da neo-zelandesa Janet Frame, de que Um Anjo à Minha Mesa (1990) é, afinal de contas, a sua autobiografia, mergulhando-nos num universo esquizofrénico de onde sai a força da narrativa, num racord muito interessante com esse filme assombroso chamado Chibusa yo eien nare/Matérité Éternelle, (tradução francesa que iremos manter por falta de outra referência), que Kinuyo Tanaka realiza em 1955. Como sucede, aliás, em O Piano (1993), nessa imagem irreal deste instrumento repousando numa praia nos antípodas, em pleno século XIX, para Jane Campion fazer acordar a tormenta das pulsões sexuais mais obscuras e encontrar o romance e a libertação pela arte entre os contrastes mais vincados, entre a delicadeza do cetim e a pulsão animalesca de Baines, a dantesca personagem incarnada por Harvey Keitel. Não será nada exagerado extrapolar essa negociação emocional com o jogo de sedução celebrado no policial In the Cut – Atração Perigosa (2003), na primeira incursão da cineasta no cinema americano, oferecendo a Meg Ryan o terreno ideal para este thriller de desejo empoderado.
Sim, talvez Um Anjo à Minha Mesa seja o filme ideal que permite essa ponte entre Jane Campion e Kinuyo Tanaka, a star maior do cinema japonês, com mais de 300 filmes, e actriz fetiche de Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu e Mikio Naruse. Mas também com uma reflexão maior que se cruza também com o espírito (ou o eco) de Ida Lupino, como escreveu Pierre Rissient. Pois de um lado temos Tanaka (ver em artigo separado), a segunda actriz japonesa a passar à realização, e do outro Ida Lupino, a única cineasta a trabalhar em Hollywood nos anos 40 e 50. Mas já lá vamos. Desde logo, com o filtro histórico de Bette Gordon fixado em Variety. Em que a cineasta se início dos anos 80 (isto ainda antes do surgimento do HIV) sugere um gaze feminino ao voyeurismo proporcionado pelo cinema pornográfico. Sim, o ponto de vista das mulheres cineastas – seguramente, por oposição, ou alternativa, so ponto de vista masculino, mas também ao seu próprio ponto de vista enquanto espectadores/as.