Entrevista com João Botelho a propósito de Um Filme em Forma de Assim
João Botelho barricou-se num armazém para homenagear Alexandre O’Neill e fazer grande cinema. Desde logo, um texto tremendo, escrito em parceria com Maria Antónia Oliveira, biógrafa do poeta. E, claro, a fotografia de João Ribeiro e daquele majestoso plano sequência inicial de 12 minutos. De que Botelho confessa ter feito “30 takes”. “É mau quando uma pessoa se engana aos nove, diz, 11 minutos…” Mas desculpa-se ao dizer que “aprendi com o teatro, que é ensaiar, ensaiar… O cinema é caro. Mesmo fazendo barato, como é, é caro.” Talvez tenha sido influenciado por Oliveira, que o ensinou “a nunca deixar entrar ninguém no ecrã”.
A entrevista decorreu na Culturgest, pouco antes da cerimónia de encerramento do 19º IndieLisboa, onde Um Filme em Forma de Assim, como sempre produzido por Alexandre Oliveira, da Ar de Filmes, concorreu na competição nacional. Não ganhou, é verdade. Mas já tinha ganho antes. Pois o filme é uma vitória. Da língua e da poesia portuguesa, da paixão pelas coisas e pelas mulheres. Por Lisboa.
Entrevista, dissemos. Mas não e possível entrevistar este homem, apenas, aqui e ali, direccionar o monólogo. O seu plano sequência. Como no filme. “Às vezes escolho coisas que me permitem falar do que quero. O O’Neill permite. Depois há a devolução de uma dávida. Ele deu-me uma coisa”, diz. E o que Alexandre O’Neill lhe deu foi uma “licença para usar” o título para o seu filme Um Adeus Português. “É uma dádiva que não tem preço”, diz. “Ou seja, deu-mo – ‘faça o que quiser’”.
Ao reflectir sobre a poesia defende que é “um poema extraordinário. De amor, de separação. De desenlace. Das frases mais bonitas de paixão.” E diz de cor: “Nesta curva tão terna e lancinante, que vai ser que já é o teu desaparecimento, digo-te adeus, e como um adolescente, tropeço em ternura, por ti”. Mas foi por causa de uma pequena frase que estava lá no meio do poema, onde se lê “essa dor portuguesa, tão mansa quase vegetal”.
“Essa foi a epígrafe do meu filme, Um Adeus Português, de 1986, sobre o luto da guerra. Não era sobre a guerra, era sobre o luto da guerra. E o O’Neill fez uma coisa maravilhosa. Ele era meu vizinho, mas não o conhecia muito bem. A partir daí conheci-o um pouco melhor. Mas ele escreveu um artigo, acho que foi reproduzido no Jornal de Letras a dizer que me tinha dado o título.” Botelho recorda ainda que O’Neill já tinha gostado da Conversa Acabada, o seu filme anterior, de 1981, sobre a correspondência trocada entre Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro, entre Lisboa e Paris, dois expoentes do modernismo em Portugal. “A partir daí falámos algumas vezes. Por outro lado, é um vulcão. Um senhor que tocou várias áreas. Não é só surrealista. Ele é um pós-moderno. Antes do pós-modernismo. Fez publicidades notáveis, crónicas admiráveis. Escreveu contos. E os poemas, os poemas mais belos …”
E por falar de Pessoa, Botelho recorda “aquela frase dele que toda a gente gosta: ‘a minha Pátria é a Língua Portuguesa’”. Isto para completar: “E o O’Neill é a minha pátria também.” Até para justificar a sua abordagem clara ao cinema musical. “As pessoas cantam. Há ópera, mas também coisas populares. Mas mesmo quando é dito, é música. Não há música por trás. É música aquilo. O texto dele. O O’Neill é um escritor que se deve ler em voz alta. Gosto muito de uma frase que o define é: ‘o erudito e o popular, juntá-los à procura do belo’. Isso é uma grande coisa.” Sim, de facto.
“O iPhone matou o cinema”
João Botelho tem uma visão algo pessimista do cinema tal como o consumimos hoje em dia. Aliás, é franco quando diz que as salas de cinema “são cada vez mais locais de comida e bebida. E de confraternização de miúdos. É muito estranho. Se reparares, os miúdos hoje têm medo do ecrã. Eles estão nessa sala a comer e beber e a ver o iPhone. O ecrã para eles é o iPhone. Para mim o iPhone matou o cinema.” E depois invoca logo Fernando Pessoa: “o Pessoa escreveu uma frase muito bonita que diz: ‘o espelho envenenou a alma humana’. Uma pessoa está convencida que é uma coisa a olhar para o espelho, mas não é tão bom como o que pensa que é. Só que o iPhone destruiu a nossa humanidade. Instituiu uma coisa que é o individualismo. Pessoa sozinhas, virtuais. Tudo virtual. É terrível. Tenho de o dizer. Da televisão, ao computador. E depois ao iPhone. Passou a ser o domínio do individualismo. As pessoas já não discutem, vão ao Google ver quem tem razão. É uma parvoíce. Há um afastamento das pessoas novas da fala, da leitura.” Por isso diz que gostar mais do Roma do Fellini (1972) do que Roma de Cuarón (2018). “Um é colectivo, o outro é individual.” Por isso, confessa: “tenho medo do que se está a passar. Do abandono da História do Cinema. Da História da Pintura, da História de Portugal.”
Apesar de tudo, talvez para suavizar a ideia algo radical dele, recordo o momento quase apoteótico na apresentação de Um Filme em Forma de Assim num S. Jorge quase a abarrotar. O cineasta magro que confessa fumar três maços de tabaco por dia, relembra: “Acho que é preciso dizer às pessoas que o cinema é um espectáculo. E que a verdade do cinema está nos espectadores. Apesar de o que se passa ali é tudo falso. É tudo mentira ali atrás. Há uma coisa que eu procuro há uns anos a esta parte, que o texto, se não for adulterado é mais verdadeiro que a imagem. O texto é o O’Neill, é da Agustina, é do Pessoa. O texto é deles.” O que ele faz é através do cinema. Para acrescentar que não gosta de metáforas. “Gosto de metonímias. E o cinema é uma metonímia. São associações de ideias. É a ideia da morte, a ideia da Rua da Escola Politécnica. É apenas uma ideia, porque não é… É papelão. Isto é o espectáculo.” Porque é a palavra do Alexandre O’Neill que lhe permite pensar o cinema. Por isso interroga-se: “Porque é que eu fiz planos sequência? Apeteceu-me fazer algo exuberante, de música. De Festa. O O’Neill era isso, a ideia da boémia, da noite ser melhor que o dia.” Até para confirmar mais uma afinidade com o poeta: “Eu também vivo de noite. Não gosto da manhã. Gosto da tarde, da noite.” De resto, confirma-nos que o filme foi feito entre a tarde, o lusco-fusco e a noite. No estúdio, claro. “Um armazém”, precisa. “Aquilo não é um estúdio”.
Aliás, este foi mais um filme devedor às limitações impostas pelos tempos de covid. “Foi muito duro”, sublinha. “Todos os dias escarafunchava os meus actores, os figurantes, a equipa técnica. Todos os dias. Tive sorte porque nunca tive um caso. Estava abençoado. Mas é uma coisa dura.” Embora sublinhe a actualidade do filme. Como se percebe no final apoteótico. “Este é um filme feito hoje, não é um filme de época. Por isso, acabei com uma trance e máscaras. É hoje isto. É a boémia dele e a minha. Mas eu gosto de Lisboa como ele gostava.” E precisa bem os modos do poeta: “Ele comia demais, bebia demais, fornicava de mais. Era tudo demais”, talvez para admitir a comparação: “Eu bebo menos, como menos, fornico menos, se calhar. Mas gosto da noite. A noite, para mim, é o espaço. E gosto da descrição.”
Uma ideia que se agarra ao filme é aquele bailado da câmara enleando-se nas pessoas. Fazendo aquilo que Botelho aprecia que é “filmar o ‘nós’, não o ‘eu’. “A ideia do plano-sequência é a ideia de respeitar o texto. De fazer movimentos e andar atrás daqueles textos. E há textos que são integrais, como Um Adeus Português, A Feira Cabisbaixa. E outros são colados. A ideia é de respeitar aquilo. Respeitar o que ele escreveu. Era o que faltava reescrever o O’Neill. É o corte e cola.” Sim, admite que roubou “umas coisinhas”: “Trabalhei com a Maria Antónia, que foi a biógrafa, para ter umas ideias. Se reparares, todas as mulheres não têm apelido. São mulheres. A Nora Mitrani (1921-1961 -, escritora surrealista búlgara), é uma ideia de Nora Mitrani. E depois há muitas coisas que vêm do cinema.” E aí confessa a sua grande proximidade com Buñuel. Por exemplo, explicando como os carneiros do filme vêm de O Anjo Exterminador (1962), ou o plano final das mulheres a avançarem sozinhas sem dizerem nada, de O Fantasma da Liberdade (1974). A ideia da Carole Bouquet no Este Obscuro Objecto do Desejo (1977). “São coisas que têm a ver com o cinema e com um pensamento, uma ideia. A ideia é perturbar as pessoas. E o O’Neill inquieta. Eu não gosto de filmes de consolação”, remata.
Ele que chegou até a filmar com um drone naquele plano inicial a revelar o estúdio todo vazio, com o ‘papelão pintado’, como ele descreve os cenários. “Agora o texto é todo verdadeiro. Eu respeito aquilo. Não altero. Não se pode alterar. É o plano sequência…” Algo que defende com fúria: “Isso é uma ideia de respeito do texto. A palavra como matéria e o texto como personagem.”
“Sei fazer filmes portugueses”
Apesar de tudo, e de todas as referências, João Botelho não se revê amarrado ao um passado, a um acerta maneira de fazer. Ele que admite as influências. Até mesmo quando vêm do filho António Pinhão Botelho. “Eu aprendo muito com as pessoas novas. Eles ensinam-me coisas. Nós os cineastas, roubamos. Quando a ideia do meu filho é melhor que a minha, eu roubo a ele. Por exemplo, eu não tinha feito este filme sem a qualidade do João Ribeiro. O cinema é uma coisa colectiva. E tem aquele pecado original. Tem de contar qualquer coisa. Tu choras com as riscas do Rotko. E não está lá nada. Uma pessoa chora a ouvir a dodecafonia do Schoeneberg. O cinema é difícil de chegar lá. Mas eu tento a abstracção. A palavra-matéria e o texto-personagem. E depois o actores. E a nova geração. Que tem muito talento, falam muito deles. Em vez e filmar o nós. Eu nunca filmei de mim. Não quero. Uma coisa é o trabalho, outra coisa é a vida. Sei lá se o O’Neill estava a rir-se quando escreveu Um Adeus Português. O interior não se sabe, sabe-se o exterior. Os gestos eu conheço, o interior não sei. Há uma ideia do recente cinema americano que é o interior, que é uma coisa que me aborrece. Os problemas de uma pessoa. Não, de toda a gente. Os textos de toda a gente.”
E há também os textos de Álvaro Cunhal, de O Jovem Cunhal, o documentário ficcionado que já está pronto e que Botelho conta apresentar, se tudo correr bem, durante a Festa do Avante (entre 2 e 4 de Setembro). “Houve uma investigação”, assume. “Não gosto dos documentários com pessoas a dizer bem, pessoas a dizer mal. Aquilo é meio ficção, meio documentário.” E recorda a precisão biográfica que recolheu da biografia de José Pacheco Pereira. “Fui ao Pacheco Pereira, fui ao (arquivo) Ephemera, várias vezes.” Sobre o ideógrafo do Partido Comunista Português sublinha o seu maior legado: “Ele ensinou-nos uma ideia de coragem. Escreveu textos muito bonitos. E foi um agitador inacreditável. Eu nunca fui do PCP. Mas Portugal sem eles era muito pior. É evidente que depois há erros.”
Entretanto, no seu ritmo de trabalho endiabrado, tem já assimilado o projecto Saramago (1922-2010) para assinalar o centenário. “Eu vou à boleia”, assume. “O que eu gosto é da sinceridade com que filmo estas personagens. Porque eu não filmo para ninguém. Filmo o melhor que sei. E depois mostro. Mas não faço para…”
A fechar deixa-nos com uma ideia de cinema. “Eu não sei fazer comédias. Sei fazer filmes portugueses. O nosso cinema tem uma coisa que é não é o cinema do movimento, é o cinema do tempo. Não é da ação, é da composição. Não é da luz e das sombras, é do plano. Tem a ver com a poesia. Nós somos grandes poetas. Tem uma razão. Isto foi um império. Depois foi encolhendo. Com Espanha a diante e o mar atrás, sentamo-nos no café e escrevemos poesia
Já no fim, em off, o cineasta de 72 anos, que confessa fiar três maços de cigarros, vai avisando: “eu nunca não vou morrer”, confidencia-nos, como se discordando de semelhante inevitabilidade. No mínimo, resignado, atirou: “ao menos, vou superar o Oliveira. Ele morreu com 106. Eu vou morrer, pelo menos, com 107”. Nem mais. Fica arrematado.