É inevitável que um festival de cinema em pleno Verão dificilmente escape a um desfrute de férias. Se é verdade que muitos procuram Karlovy Vary pelo efeito curativo das suas (escaldantes!) águas termais – ideais, siga-se, para superar os mais variados excessos – é certo que outros são atraídos por um banho de cinema que nunca será demasiado. Pois é um pouco isso que sucede todos os anos nesta famosa estância balnear em plena Boémia, que por estes dias (de 1 a 9 de Julho) recebe uma vastíssima clientela.
Este ano, com 132 filmes programados que deverão esgotar todas as sessões, como sucede ano após ano com um público maioritariamente jovem e entusiasta que opta por passar ali uma semana de férias, entre a boémia e o consumo imoderado de filmes. E já sem a obrigação de uso de máscara. E mesmo com uma guerra presente no quotidiano. Seja como for, logo às 8h30 da manhã é possível ver as longuíssimas filas para adquirir bilhetes. Algo que sucede nas imediações do Hotel Thermal, a sede deste evento presidido por Jiri Bartoska e com a direcção artística de Karel Och, a celebrar a sua 56ª edição, beneficiando, como sempre, da sua posição estratégica de calendário, apenas algumas semanas após o Festival de Cannes. E com a possibilidade de descobrir, na secção Horizontes, mais de meia centena dos principais trunfos apresentados no circuito de festivais. Não só em Cannes, mas também em Veneza, Berlim ou Sundance. Serão os casos, por exemplo, Il Buco, do italiano Michelangelo Frammantino, prémio do Júri em Veneza, Decision to Leave, de Park Chan-wook, premio realização Cannes, e claro Triangle of Sadness, de Ruben Ostlund, a Palma de Ouro deste ano em Cannes. Isto para citar apenas alguns exemplos.
Diante do luxo desta programação, talvez o objectivo seja até mesmo superar a edição anterior à interrupção de 2020, apesar de o ano passado tenha já sido um evento com público (e no qual participámos uma vez mais) e que teve até como principal atracção Ethan Hawke e Johnny Depp, este na qualidade de realizador, com o documentário Crock of Gold: A Few Rounds With Shane MacGowan, documentando a carreira da banda e do fundado dos The Pogues.
Como seria de esperar, uma vez mais, as estrelas de Hollywood não faltaram à chamada e cumprem o elemento de glamour indispensável para animar a passadeira vermelha. Que este ano será defendida pela presença do actor Liev Schriber, mas também do convidado Geoffrey Rush, o homenageado deste ano com o Globo de Cristal pelo conjunto da sua carreira, bem como o actor Benicio Del Toro que irá receber o prémio do Presidente do Festival. Mesmo com a ausência da insubstituível Eva Zaorlová, falecida em março passado, aos 89 anos. Ela que imprimiu uma nova visão e recuperou a credibilidade do festival durante os anos 90, afastando-se da dinâmica anterior pautada pela Guerra Fria e um afastamento do cinema ocidental.
Também com a guerra na Ucrânia em pano de fundo, foi feito um esforço de aproximação, não só ao festival de Odessa, que não pode realizar-se, recebendo agora o festival diversos trabalhos ‘work in progress’. Mas também pela inclusão de filmes ucranianos que retratam o conflito. É o caso de Mariupolis 2, do lituano Mantas Kvedaravicius (embora terminado pela noiva após a sua morte durante a rodagem), também exibido em sessão especial em Cannes, bem como Buterfly Vision, de Maksym Nakonechnyi, e Vidblysk/Reflection, de Valentyn Vasyanovych, cada um evocando diferentes ângulos da agressão russa na Ucrânia (tema que trataremos numa matéria à parte).
Apesar de tudo, o festival reafirma que não fará um boicote ao cinema russo, mesmo que não tenha sido selecionado qualquer filme para as secções competitivas, Globo de Cristal e a Proxima. Mesmo que subsista a excepção ao muito aguardado Captain Volkonogov Escaped, da dupla Natasha Markulova e Aleksey Chupov, ambira numa secção paralela, mas que motivou já um protesto por parte da comunidade cinematográfica ucraniana. Apesar de se tratar de um filme russo, Karel Och justificou esse convite por se tratar de um filme assente numa forte voz de protesto, pondo a descoberto a personalidade manipuladora de Stalin e do seu regime de tortura e eliminação de inocentes.
No lado das novidades, talvez a mais relevante seja a novidade da secção Proxima, substituindo East of the West, apresentando 12 filmes que já não se limitam a uma geografia que tradicionalmente trazia uma forte embaixada do cinema russo. Redireciona-se agora para uma programação que aposta em propostas estéticas e narrativas mais diferenciadas – talvez um pouco na linha da secção Encontros, da Berlinale. Aqui encontraremos, por exemplo, a produção brasileira Tinnitus, assinada por Gregorio Graziosi, combinando um drama desportivo com um ambiente de thriller físico. Sublinham-se ainda os regressos de Tomasz Wasiliewski, com o seu novo filme Fools, e de Andreas Horvath, com Zoo Lock Down. Ou até a presença de um filme proveniente do Irão.