Sábado, Abril 27, 2024
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A imortalidade de Jean-Luc Godard

Não há forma justa de anunciar a morte de JLG…

Talvez seja até inevitável recorrer à frase iconoclasta, maliciosamente inserida no seu filme de iniciação, A bout de soufle, proferida na cameo do cineasta Jean-Pierre Melville (1917-1973), quando este responde à sua maior ambição na vida: tornar-me imortal e depois… morrer. E não será esse o momento da imortalidade de Godard (não esqueçamos que o seu nome é ao mesmo tempo God e Art) quando decide proferir a sua derradeira ‘acção!’ e avançar com a própria morte assistida, na sua casa em Rolle, na Suíça?

Há uma dimensão de certa forma absoluta no cinema de Jean-Luc Godard que dificilmente será reposta (ou ultrapassada). Não só pela diversidade multifacetada que percorre as suas veias fílmicas, num incessante desejo de pensar e repensar o cinema, mas também a incessante fúria de vida e de liberdade. Algo que se concretiza até mesmo na sua morte, aos 91 anos. Ter-nos-á Godard deixado algum sinal para a posteridade? Até isso é possível num cineasta que há muito se projectou para além da vida… E da morte. Pois ele mesmo é (uma grande parte da) História do Cinema. Com ele tivemos a oportunidade de reviver um novo Renascimento, o do cinema. Até porque o seu percurso poderia ser comparado à viagem da Arte, liberta dos escolhos da Idade Média, apostada numa vontade humanista de renascer. E o cinema de Godard renasceu tantas vezes.

Logo aí temos, o desejo da ‘viagem a Itália’ proferido por Jean-Paul Belmondo, quando desafia Jean Seberg a ‘ir com ele a Roma’, no seu descapotável roubado, em À bout de souffle/O Acossado (1960), ou a própria eclosão desse renascimento em Le Mépris/O Desprezo (1963), com uma outra malfadada viagem a Roma, com uma tal BB a bordo de um desportivo vermelho. E tantos, tantos filmes…

Sim, foi um dos bandeirantes da modernidade (ou será pós-modernidade?) do cinema, assumindo os cânones do período clássico para depois conceder liberdade ao gesto da câmara. Foi por isso mesmo um dos principais fôlegos da chamada Nouvelle Vague, imprimindo um fulgor ao cinema que contaminou (e revolucionou) toda a década de 60.

Com Anne-Marie Miélville, em 1980, na rodagem de Salve-se Quem Puder (Libération)

Foi hoje, dia 13 de Setembro (dia no aniversário da minha mãe que também já não está cá) que a agência France Presse informou que o cineasta franco-suíço morrera “em paz na sua casa”, junto à mulher Anne-Marie Mielville. Informava ainda o jornal Libération, citando uma fonte familiar, que a morte de JLG tinha sido ‘assistida’, algo legal na Confederação Helvética, confirmando que “ele não estava doente, apenas exausto. Por isso tomou a decisão de terminar a sua vida. Foi a sua decisão e é importante que isso seja conhecido”. Chapeau! É isso a imortalidade.

Fiquemos então apenas com o seu cinema. E como o classificar? Talvez começar por dizer que se trata de um cinema absolutamente livre. De resto, impulsionado pelo próprio gesto criativo que sempre considerou a História como alimento e inspiração. Seja por um permanente questionar do próprio cinema, a arte e a vida como o fez, de resto, de uma forma brilhante no seu derradeiro filme O Livro de Imagem (2018), de certa forma, complementando o monumental Histoire(s) du Cinéma (1989-1999), onde a tecnologia digital se combina com o celulóide, onde a sua voz evoca todos os fantasmas do cinema. E através deles nos interpela a nós.

Deixamos a narrativa da sua História aos obituários da net, bem como a vida afectiva às suas três Annes (Wiazemsky, Karina e Marie Miélville). Contentamo-nos apenas com os dois efémeros ‘momentos Godard’, que valem o que valem. O primeiro, na conferência de imprensa que JLG deu em Lisboa, no Fórum Picoas, a propósito do seu filme Nouvelle Vague, em 1990. Pouco antes, respondia a uma entrevista de emprego na Atalanta Filmes, a cargo do produtor Paulo Branco e de Pedro Borges. Lembro-me como se fosse hoje: Eles: “Então conheces o Godard?”. Eu: sim. Diz lá então alguns filmes. Eu: A bout de soufle… Pierrot le Fou… Le Mépris… Ok, esta bom, estas contratado!

Conferência de imprensa Cannes 2018 (Fonte Youtube)

O outro momento efémero foi em Cannes, em 2018, na conferência de imprensa de Le Livre D’Images/O Livro de Imagem (2018), em que me esgueirei na fila expontânea por forma a assegurar um momento ‘face time’ com JLG. E para repetir de forma pueril uma variante da vasta e ambiciosa pergunta formulada por André Bazin no seu famoso livro de textos, sobre o tal ‘significado do cinema’. Do outro lado do iPhone, a voz cansada esclareceu: “o cinema, acho que disse aos seus colegas, não é o que se vê nem o que se mostra todos os dias no Facebook, mas o que não se vê e que nunca se mostra no Facebook”. Para mim, esta frase (tal como o significado da nossa vida social-digital) tem a dimensão de um aforismo, que ganha cada vez mais ressonância. ‘Corta!’

 

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