Segunda-feira, Abril 29, 2024
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Adirley e Joana: “Começámos a fazer um filme de ficção e terminámos quando ele se tornou real”

“Eu acho que fiz um filme marxista à moda antiga” (Adirley Queirós)

Conversa ainda a ‘quente’, depois do primeiro contacto com o avassalador Mato Seco em Chamas, durante o festival de Berlim, em Fevereiro passado, em pleno Berlinale Palatz. Transcrita agora em frenesim a pensar na estreia nacional. Isto depois já do sucesso no IndieLisboa e nos diversos festivais por que já passou. Agora a vez de experiência esta verdadeira “etnografia da ficção”, como lhe chama Adirley Queirós, como que a sublimar essa tal linha invisível entre a realidade e a ficção. Sendo que a maior realidade desse momento era o bebé de ambos, cujos ruídos de satisfação, iam povoando a nossa conversa.

Não é fácil distinguir no vosso filme o que é real e o que é ficção. Eu vi-o quase como uma ideia louca, uma espécie de Mad Max tropical… 

Adirley Queirós: Total, total! O sonho é fazer mesmo o Mad Max, inclusive.

Mas foi intencional essa ideia de fazer um cinema sem amarras, quase sem controlo?

AQ – Sim, completamente. Aliás, queríamos muito ir para um absurdo. O filme tem mesmo essa ideia do absurdo, como a ideia do petróleo. O filme tinha muito a prespectiva de lidar com aquilo que estava a sentir naquele momento. Começamos a fazer o filme na mudança de governo. Ali em 2016, 2017, no Brasil. Aquela do Bolsonaro é da eleição dele.

Sim, vocês entram mesmo dentro da manifestação de apoio do Bolsonaro. Como conseguiram? Imagino que como falsos apoiantes…

AQ – Pois foi. Era um momento de muita tensão no Brasil. Eles já sabem quem votava em quem, quem era de esquerda, quem era de direita. Quando fomos filmar eu estava muito barbudo, cabeludo, de sandálias, de bermudas. Era uma grande tensão. Estava eu, a Joana e o Chicão, o técnico de som, que fez todos os meus. filmes. Ele é de origem alemã. Disse que trabalhava para uma televisão alemã e eles deixaram (risos).

O Mad Max tropical (Terretreme)

Voltando a Mad Max, sente-se aqui também uma ideia apocalíptica…

AQ – Acho que já existia no filme uma ideia apocalíptica. A própria ideia bolsonarista é apocalíptica. Para a gente, né? Já vem uma distopia. O que se apresentava era um país que ia ser desmobilizado, fragmentado. E sentia uma perseguição a muitas dessas pessoas. Aquelas personagens do nosso filme seriam obviamente perseguidos por este governo, entendeu?

E como foi que trabalharam a ideia do documento e da ficção? É que nada parece documentário, mas também percebemos que não é ficção. Como é que isso foi assumido do início?

Joana Pimenta – Eu acho que a gente foi construindo personagens ficcionais. Desenvolvendo arquétipos ficcionais e depois decidindo filmá-los como um documentário. Então propusemos à Chitara, à Léa, à Andreia uma série de personagens…

Que elas vestem…

JP – Sim. A seguir começamos a filmar. E na verdade só ficamos contentes quando se apaga a ficção, que é uma coisa meio contraditória. Ou seja, começamos a fazer um filme de ficção e só terminamos quando ele se torna real. Pelo menos para nós. O filme joga muito com isso. No entanto, temos uma ideia de uma fronteira, porque não se decidia à partida se uma cena ia ser documental ou ficcional. Tem o modelo de produção que o filme reflecte.

Com a vantagem de ter uma equipa reduzida…

JP – Sim, uma equipa pequena, com mais tempo para fazer as coisas do que necessariamente com mais gente. Por isso, o filme tem um tempo muito dilatado, um rigor muito grande, eu acho. Pelo menos, em termos de imagem, direcção de fotografia, arte, som, actuação. Sempre um rigor muito grande com aquilo que é feito. Foi a partir disso que criámos as condições para que o filme sair de controlo e para sermos nós, sempre rápidos e flexíveis, a lidar com o descontrolo que o filme propõe.

AQ – Para mim, eu acredito nisso. Para mim, é uma espécie de etnografia da ficção mesmo. Uma proposta exagerada da ficção. A gente cria esses arquétipos, como a Chitara, e propõe todo um universo ficcional para ela. E propõe que ela viva aquilo, que ela tenha crença naquilo. Portanto, é muito mais do que actuar, viu? É trazer elementos do quotidiano que ela possa mostrar para a gente.


Como é que sugeriam essa liberdade?

AQ – Eu dizia pra ela: “Então Chitara você vai achar petróleo, portanto vai cavar buraco, se vira. Andreia você vai ter de subir a torre. Então que o corpo dela vira o personagem. Quando a gente chega nessa ideia da crença.

Portanto, quando deixa de fazer sentido essa divisão…

AQ – Nós acreditamos nelas, enquanto personagens, a gente começa a filmar como se fosse um documentário. Lá na Ceilândia tem cinco mulheres que acharam petróleo… Vamos então descobrir essas mulheres. Quando a gente chega pra fazer isso já percorreu um caminho enorme. O que vai interessar, na verdade, é quando se chega neste lugar. Vou filmar vocês numa crença que é realidade.

O incrível é que é com a realidade que voltam a sair da ficção. Como a Léa que volta a ser personagem, mas na realidade. Falo do momento em que ela é presa…

Joana – O que aconteceu foi que a Léa sai da cadeia – de certa forma é aquilo que está lá – ela sai da cadeia, depois de sete anos, a Léa nem sabia o que era um telemóvel. Ela vem de muito tempo presa. Sai e duas semanas depois começa a filmar. O que acontece é que ela continua a traficar e não percebe que está a ser filmada. Na verdade, a Léa é presa porque é filmada a vender uma porção de crack em troca de duas latas de desodorizante.

AQ – Que é um absurdo, não é?

JP – O que acontece é mesmo isso. A determinado momento a Léa é presa de novo e vamos entender mais tarde, porque vai a julgamento, porque se tem acesso ao processo, mais tarde entende porquê.

Seguramente, a Léa é a personagem mais incrível deste festival. Nas suas várias dimensões.

JP – Eu também acho, apesar de não ter visto os outros filmes…. (risos)

AQ – Eu vou falar pra ela. Ela é minha vizinha. Eu acho que ela é uma aparição. Ela tem uma aparição que é absurdo. Durante o processo a Chitara falava muito da irmã. A Lé é isso, é aquilo. Era quase uma crença. Ela vai vir para ajudar no controle do petróleo. Isso já muda a vida real para o filme. E a Léa, na cadeia, ouvia falar da história. Ela dizia: “A minha irmã agora é actriz e está a fazer um filme e a gente acha petróleo. E petróleo é de nós.” Ela a falar assim. Era muito divertido ela falar assim, sabe? Chega um ponto que até queríamos achar uma actriz para ser a Léa. Só pelo que ouvíamos falar dela.

Chitara (Joana Darc): Foto: Terratreme

Percebe-se que é uma mulher vivida, e que aprendeu a (sobre)viver na cadeia…

AQ – Ela passou por várias situações na cadeia. Ela era uma estrela naquela cadeia, sabe? Bota pra render, bota pra fuder! Então chega um dia que ela aparece lá, para visitar a irmã. Quando a gente olha para ela, era inacreditável. É uma pessoa absolutamente inacreditável. Como uma índia, né?

No início do filme eu não sabia se era um homem ou uma mulher….

AQ – Sim, é isso que ela fala. Eu pergunto para ela: você quer fazer um papel masculino ou feminino. E ela diz: eu pego os dois. Era isso que ala falava pra mim sempre. Ela é aquilo. Não tá nem aí. Não é pautada, eu sou isso eu sou aquilo. Ela é o que é. E daquele jeito. Quando ela apareceu era muito incrível porque quando a gente procurava ela estava em cima da caixa de água. Sentadinha, fumando. Parecia um animal mesmo, pronto a atacar, sabe?

JP – Incrível como assumir aí mesmo tempo a presença da câmara? Sabendo que está dentro de uma cena de filmagem, mesmo que não precise de pensar para fazer esse papel. É que nunca se percebe quando é real e quando é ficção.

AQ – Mas ela entrou num lugar muito bonito. De actuação. A primeira cena em que a Léa aparece, é uma cena em que está chovendo e o relâmpago bate nela. E ela vai contar a história para a irmã. É a primeira cena filmada da Léa. Foi aí que perguntamos se ela queria participar no filme com a gente. Aí nós explicamos que ela vai ser a irmã da Chitara e dizemos o que vai fazer ali nesse dia. Lembro-me da primeira vez que a Joana a foi filmar ela, ela sai de foco. Porque ela está ali, meia desconfiada. Então ela não entende ainda o processo da câmara, fica fumando voltando para trás… Eu acho muito bonita essa cena, porque ela tem uma coisa assim meio de animal. Mas dois dias depois ela fazia essa cena exactamente igual. E contava a história da mesma maneira. Ela estava atuando. Ela tem um poder natural de atuação, um domínio de mise en-scène. Ela sabe onde a câmara está, a câmara gosta dela, obviamente, porque ela é uma pessoa incrível. E a câmara fica atrás dela, né?

De certa forma, não serão as próprias condições de rodagem que ficaram em causa com a ameaça Bolsonaro? 

AQ – Claro. Veja bem, existia uma política pública de cinema no governo PT. Que foram dois anos de Lula e um ano de Dilma. Fizeram uma revolução nesse sentido. Descentralizaram o acesso ao cinema. Foram criadas várias escolas de cinema. No meio do mato, do nada. Na Roça. Isso gerou uma outra possibilidade de contar as histórias. Eu acho que fiz um filme marxista à moda antiga. Agora vamos ver o que o futuro nos trás.

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