Amantes, prostitutas, mas também poetisas e vítimas de abusos e infidelidade. Assim são as heroínas de Kinuyo Tanaka que importa descobrir numa curta, mas intensa filmografia. Ao todo, meia dúzia de seis filmes absolutamente notáveis, a apontar o caminho da modernidade feminina, finalmente disponíveis nas nossas salas (City Cine Alvalade), pela Stone and the Plot. Isto depois da descoberta no festival Lumière, em Lyon, há dois anos atrás. Para já, a primeira Parte deste Integral Kinuyo Tanaka, com A Lua Ascendeu, Carta de Amor e Para Sempre Mulher.
“Para mim, o período da guerra (1939-45) foi como se tivéssemos caído num buraco. E para sair desse buraco, convenci-me de que seria necessário que as mulheres tomassem o comando, a começar pelo comando do cinema”. Quem o diz é Kinuyo Tanaka, a estrela mais poderosa do cinema japonês, e actriz regular de Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi e Mikio Naruse, nesse período do pós-guerra. Isto antes de assumir, em 1953, esse seu gesto de coragem criativa atrás das câmaras, possibilitado também pelo estúdio ShinToho e pelo apoio de Keisuke Kinoshita, um cineasta assumidamente gay que assina o seu primeiro guião, Carta de Amor. Assim começava uma carreira ao longo de uma década incompleta e ao longo de seis longas metragens em que assume com determinação o papel da mulher no centro e como tema absoluto do seu cinema.
Percebe-se que o cinema de Kinuyo Tanaka é um de urgência, dentro da história permanente das mulheres cineastas. Por aqui se dá uma certa comunhão dos valores de um realismo imediato surgido pelo trauma do pós guerra, aliado a uma enorme vontade de viver e seguir o destino da juventude. Eficaz a contrastada fotografia a preto e branco, alternada entre grandes sombras e uma luz intensa. A câmara liberta-se à altura da ‘mulher’, por certo para melhor auscultar a classe média envolta em questões sociais, seja de dinheiro, de trabalho, mas também de opressão feminina, de amores incompreendidos, esboços de pequenas comunidades humanas (como em La Nuit des Femmes, de 1961, por exemplo, em que uma mulher deseja esquecer o seu passado de prostituição).
Já no início dos anos 60, Tanaka alarga o quadro da sua imagem, não só em dimensão como também em cor, com a experiência da Cinemascope a aproximar-se do fresco histórico e político, penetrando num espaço habitualmente dominado pelo masculino, como veio sem La Princesse Errante (1960) e Mademoiselle Ogin (1962). Há aqui uma explosão de cor e lirismo visual que identificamos próxima de um Douglas Sirk (de novo, como também no tema do vincado melodrama amoroso, diante da doença, como em Meternité). Igualmente, em La Princesse Errante sobre a jovem que aspira a uma melhor educação mas que é forçada ao casamento com um homem poderoso. Elemento prolongado em Mademoiselle Ogin (e em tantos outros filmes – Ozu fez assim o seu cinema, embora suavizando ao limite as componentes sociais), em face do romance com um samurai convertido ao catolicismo, apesar de ter o seu destino já marcado por um casamento de conveniência.
De referir que Kinuyo Tanaka (nascida em 1909) inicia-se na formação musical, evoluindo depois para a representação com uma carreira como figurante na década de 20 nos estúdios Shochiku. Será precisamente a sua determinação que rapidamente abrirá caminho à profissão integral de atriz, onde trabalhará sem interrupção. Desde logo, travando amizade com Ozu acabando por a dirigir em sete filmes mudos. E não terá sequer, ao contrário de outras, problema na transição para o cinema sonoro.
Kinuyo participa em média em dez filmes por ano com vários cineastas acabando por justamente assumir o estatuto de “mãe do cinema japonês”. Durante os anos 50 trabalha com cineastas da segunda vaga, como Miki Naruse (La Mère, 1952), Ozu (Flores do Equinócio, 1958) e sobretudo Mizoguchi, ao longo de uma quinzena de películas, incluindo as obras-primas A Vida de O’Haru (1952) e Contos da Lua Vaga (1953). E é precisamente após esta experiência que Kinuyo decide passar à ação, ou seja, passar para trás da câmara. Uma decisão de certa forma terá recebido um input decisivo pela intenção manifestada por Claudette Colbert, durante uma passagem de Kinuyo por Hollywood, ao confidenciar-lhe a intenção dela em fazer cinema, um desejo, como sabemos, não chegaria a concretizar-se. Ao contrário da japonesa que se estrearia como realizadora, nesse mesmo ano.
Algo que não se revelaria como uma descoberta, pois antes a sua curiosidade fora sendo satisfeita ao ao longo de uma observação clínica do trabalho, visão e métodos dos vários realizadores com quem foi trabalhando. Apesar das óbvias reticências (e mesmo oposição) por parte dos cineastas japoneses, em particular Mizoguchi, de quem era a sua musa, tentou desmobilizar e tal ideia (recusando-se mesmo a escrever uma necessária carta de recomendação apesar de ser a maior estrela do cinema japonês), e mesmo o seu marido Heinosuke Gosho, demonstrando a sua oposição no sindicato dos realizadores.
Acabaria por recolher algum apoio em Mikio Naruse, ao assumir-se como assistente de realização de Frère et Soeur (1953). E depois de obter a necessária recomendação do cineasta Keisuke Kinoshita, autor de A Balada de Narayama (versão de 1948) que haveria de a apoiar para escrever o guião de Lettre d’amour. É então nesse período de pós-guerra que o jovem Reikichi encontra o seu amor de juventude, Michiko (Tanaka) que vem a saber que teve um aborto de um GI americano e que lutará para suprir a sua vergonha. O filme acabaria por se selecionado para a edição de 1954 do Festival Cannes (num júri presidido por Jean Cocteau e com André Bazin e Louis Buñuel, entre os jurados, numa competição com mais de 40 filmes). Serve como curiosidade que a Palma de Ouro desse ano foi para Jigokumon/Gate of Hell, de Teinosuke Kinugasa, o primeiro filmes japonês colorido a ser exibido fora do Japão.
Seria, aliás, no final da rodagem de Intendente Sansho (1954) que Tanaka anunciava a Mizoguchi que iria realizar o meu segundo filme”. Ao que ele terá replicado: “Deixa-te disso. Não vale a pena”. Tarde demais, a sua decisão de prosseguir uma carreira como realizadora estava tomada, apesar de todos os obstáculos. Algo que haveria de proporcionar também a ligação entre ambos. Felizmente, receberá o apoio merecido por parte de Yasujiro Ozu, que lhe oferece um guião, escrito em 1947, que não pode realizar. Mas também do seu ator fetiche, Chishu Ryo. Um filme próximo do ambiente de Ozu, explorando os temas familiares, o casamento, as relações entre pais e filhos, introduzindo três raparigas no seio de um Japão à acordar para a modernidade e para a emancipação feminina, um aspecto trabalhado com subtileza por Tanaka.
Para o seu terceiro projecto de realização, Kinuyo Tanaka adapta a biografia da poetisa recém falecida Fumiko Nakajo (1922-1954), falecida de cancro aos 31 anos, e depois de um divórcio doloroso após a infidelidade e violência doméstica por parte do marido. Portentosa a história de amor desta mulher física e psicologicamente debilitada – o divórcio, por um lado, e o cancro com abdução dos seios, que irá proporcionar a imagem mais forte do festival de Lyon, quando esta mulher exibe o corpo mutilado – quase santificado, como Jean D’Arc – na cena em que deixa cair a cabeça depois da mãe lhe lavar os cabelos, assumindo o melodrama e o sentimentalismo que no final provoca mesmo no espectador mais empedernido uma torrente de choro convulsivo.
Kinuyo levará cinco anos para voltar a filmar. Embora desta vez, em La Princesse errante/Ruten no ohi (1960), com a estrela Machiko Kyo (A Imperatriz Yang Kwei Fei, de Mizoguchi, 1955) encare, pela primeira vez, o cinema a cores, em mais uma história de amor imposto e destino femininom, em que Kinuyo assume a modernidade do seu cinema. Em La Niut des Femmes/Onna hakari no yoru (1961), Tanaka regressa ao tema da prostituição, numa narrativa contemporânea da época, em que a cineasta introduz deliberadamente diversos elementos documentais, sem deixar de contemplar um certo sacrifício que restitua a integridade perdida.
A carreira fértil, mas algo curta de Kinuyo Tanaka como cineasta encontra o seu topus na adaptação de mais um filme histórico, desta feita, revisitando o século XVI, em que a personagem fictícia acaba por se suicidar para evitar os abusos sexuais e de classe. Mademoiselle Ogin/Ogin-sama (1962) decorre numa sociedade de total domínio masculina e em período de auto-isolamento do Japão e da repressão do cristianismo. É, portanto, o sacrifício interior que Tanaka filma em estilo de assumido academismo e pausada reflexão, mas em que se sente o pulsar de um erotismo recalcado, afinal de contas muito em linha do que haveria de explodir em meados dessa década de 60.