Nação Valente chega às salas de cinema no momento certo, na semana que antecede o 25 de Abril. Precisamente, com um filme calhado a assaltar-nos a memória e agitar todos os fantasmas que nela permanecem. Depois da sua estreia mundial no verão passado no festival de Locarno, na Suíça, integrado na competição oficial para o Leopardo de Ouro, bem como da passagem, a semana passada, no festival New Directors/New Films, em Nova Iorque, chega a vez do teste nas salas de cinema nacionais.
Um encontro com Carlos Conceição, precisamente, após a sua chegada dos Estados Unidos, com o desencontro horário do jet lag, sem dormir e com uma constipação de respeito. Ainda assim, com energia suficiente para a conversa sobre Nação Valente. Isto numa altura em que o cineasta termina já a pós-produção do meu próximo filme, Baía dos Tigres, uma vez mais com a Terratreme. Será, segundo nos confidencia, “uma espécie de trilogia com o Serpentário e o Nação Valente.”
Pode dizer-se que existe aqui uma ligação, pelo menos, geográfica com Serpentário, o teu filme anterior. Sentias que a questão colonial era um tema que deveria tratar com cinema?
Nós fazemos os filmes sobre aquilo que conhecemos. Um realizador português fará filmes sobre Portugal. Eu também os faço e contínuo. Mas como sou português e angolano faço filmes em outras paragens. Ainda que este não tem nada a ver com o Serpentário. Acho eu.
Há, pelo menos, uma certa sequência.
Sim, eu talvez por ter vivido metade da minha vida em Angola, há algumas ideias que são lisboetas e outras ideias que têm de ser filmadas em Angola. Acho que isso tem a ver com a minha própria vivência e a minha perspetiva sobre o mundo. O facto de ter nascido e crescido em Angola coloca-me numa posição relativamente externa relativamente à perspetiva portuguesa. Mas também em relação à angolana. Quase como alguém que vê de fora. Pelo menos, uma posição suficientemente confortável para ter o discurso neste filme que mais me beneficiaria o filme.
Até porque o passado dificilmente nos larga…
Essa é que é a questão. E a razão deste filme. Que é justamente a questão desse passado. Sobre os muros. Que são as ideias velhas e que parece que não há maneira de ultrapassar.
Achei curiosa a cronologia que colocaram no press release do filme. E que vai de 1929 e até 2020.
Aquilo é basicamente um historial do fascismo em Portugal.
Que vai até ao Chega, não é?
Sim, vai até às eleições de 2020 que deram o 3º ao Chega. E, se calhar, daqui a alguns anos iremos acrescentar mais alguns episódios.
Pois, era bom que chegasse…
Sim, era bom que chegasse. (risos)
Sentes então que este um filme sobre uma certa herança?
Mais do que uma herança é um filme sobre a prevalência dessas ideias. Ou o ressurgimento dessas ideias nos dias de hoje. Por isso é que eu digo que o Nação Valente é muito mais um filme sobre o presente do que um filme histórico. Precisamente pelo ressurgimento dos ideais fascistas na nossa sociedade e este impulso de estarmos a olhar para trás. No nosso fascismo em particular. Em que algumas pessoas se orgulham a dizer que não foi tão mau quanto em Espanha, ou como foi com o Mussolini. Esse era um ditador, o Salazar, coitado… Há quem diga estas coisas, mas a verdade é que o fascismo é o fascismo. A brincar, a brincar, nessa cronologia estão uma série de coisas que são absolutamente inconcebíveis. Como a falta de direitos das mulheres, ou melhor, eram-lhes retirados. Foram-lhes progressivamente tirados. Ao fazer um filme sobre isso num contexto português acho que era impossível não mencionar a questão da descolonização. É aí que este filme se torna aquilo que ele é.
Apesar da cronologia incluir aquele dia, que agora se aproxima – que é o 25 de Abril -, interrompendo essa longa ditadura.
Claro. Acho que o 25 de Abril vai ter sempre essa importância e essa condição de momento de viragem, a partir do qual nada mais seria como dantes.
Pelo menos que pôr no nosso léxico a palavra democracia e liberdade. Mas que pode também vir a ser questionada com um certo recrudescimento da extrema-direita.
Muito embora Portugal esteja na vanguarda de certos progressos, como a despenalização das drogas leves, a legalização do aborto, do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Isto tem de ser orgulho para Portugal. Apesar disso há muitas páginas que não estão viradas em relação ao passado menos risonho da nossa ‘nação valente’.
Sem dúvida. Há muito ainda por fazer.
Por exemplo, o racismo institucional e infraestrutural parece que não há meio de ser ultrapassado. É uma coisa que parece entranhada na sociedade e na forma de olhar. Felizmente há toda uma nova geração que está mesmo com o pensamento no lado oposto. Já deu a volta e já conseguiu ultrapassar essa barreira. Mas ainda hoje ouvi de um taxista as coisas mais inconcebíveis: misoginia, racismo e homofobia na mesma conversa. E isto é o topo do icebergue.
Depois de ver o filme percebe-se que há aqui um pensamento de uma geração mais recente que tem necessariamente uma visão diferente da guerra colonial.
Lá está, por isso eu digo que este é mais um filme sobre o presente do que um filme histórico sobre a descolonização, a luta de libertação, o 25 de Abril ou a independência de Angola. Acho que é mais um filme sobre o presente e sobre de que maneira estas ideias velhas que voltam – esses muros -, reaparecem como se fosses cogumelos. Nesse sentido, é um filme que funciona um pouco como aviso à navegação, porque uma pessoa quando preserva muito as ideias do passado, acaba por viver só no passado.
No entanto, um passado alegórico a pensar também no presente.
Sim, porque para abordar estes eventos passados, embora numa perspetiva do presente, o melhor é fazê-lo através de alegorias, em que os discursos estão sediados nessa época. É o que tento fazer no filme. Por exemplo, a personagem militar do Gustavo Sumpta, é uma personagem de ficção, representa o antigo regime de uma forma caricatural. Não existe nenhum propósito de representação realista.
O mesmo se passa com a parte do filme que lida com uma ideia romântica, da jovem angolana que se apaixona pelo soldado… Um lado de ficção intencional, presumo?
É porque fui eu que escrevi. Mas isso acontecia. Aliás, foi o Gustavo Sumpta que me disse que os miliares chegavam a Luanda e nunca tinham dado um beijo de língua… (risos) Eu ri-me com isso e levei essa ideia para o filme. Por outro lado, a personagem que a Ulé Baldé faz é uma mulher livre com o olhar cristalino, inocente de certa forma, porque não está engajada em nenhum grupo. É pura. E não faz julgamentos de valor. O contrário da personagem da Leonor Silveira faz, que é uma representação que os portugueses levaram para África que foi o cristianismo.
A Leonor Silveira que tem um momento muito breve, mas que é absolutamente avassalador.
Exatamente. Quando fomos filmar e eu percebi que o papel dela, daquela freira, acabava tão cedo dentro do filme, porque dentro do guião ela tem uma presença muito forte. Mas tem menos a ver com tempo de ecrã do que com a importância narrativa.
É interessante que fales naquilo que ela representa, numa altura em que acabamos de a ver a sua fitografia num cartaz do festival de Cannes (na Quinzena dos realizadores). Há 30 anos suponho, no Vale Abraão, do Manoel de Oliveira.
Pois, aí falamos de outra representação. A Leonor é um ícone. E não temos assim tantos ícones no cinema português. Ela é um deles.
Do João Arrais já reconhecemos o seu trabalho impressionante. Como foi este teu novo trabalho com ele?
Foi muito espontâneo. Muito descomprometido e desempoeirado. Temos muita confiança mútua ao longo de muitos anos de trabalho. A colaboração é sempre retribuída.
Uma coisa que gosto muito no teu filme é a fotografia e esse lado noturno que sei que gostas particularmente. E que sabes fazer muito bem. Uma opção estética que teve a ver com esses dois tempos, o passado e o presente?
Uma vez mais, a forma do filme deve refletir o tema. Por isso, o filme começa um pouco vago e depois vai cimentando uma história que, no final, é tão simples quanto temos de derrubar ‘aquele gigante’. Isso é, a meu ver, como a História se constrói. Pouco tempo depois dos acontecimentos os factos dão vagos em relação àquilo que aconteceu. Mas com o passar das décadas, o olhar para trás vai simplificando as coisas em ideia muito concretas. O filme, de certa forma reflete isso. E reflete de forma plástica essas noites, e mesmo nos dias, uma ideia deliberada contra naturalismo.
Ficamos com a impressão que o naturalismo foi posto de parte…
Queríamos que o filme carregasse essa negação do naturalismo em cada fotograma. Em prol de uma certa mitologia. A ralação com o Vasco Viana (diretor de fotografia), tal como o João Arrais (protagonista) já tem muitos anos. É importante para o meu resultado criativo e para o resultado dos filmes. Eu habituo-me a saber que referências tenho de dar ao Vasco para ele interpretar o caminho visual do filme.
Quais foras as principais inspirações visuais neste caso?
Trabalhamos sobretudo com referências de pintura e com algumas ideias abstratas. Por exemplo, expressionismo, mesmo sem uma imagem concreta. Vamos fazer as sombras das árvores tão grandes como as próprias árvores. Coisas assim.
E que artistas em concreto desejaste aproximar-te?
Falámos em Gustave Doré, falamos em Caravaggio. Houve um filme que foi importante para essa composição visual que foi o I Walk With a Zombie, do Jacques Tourneur (1943) e uma pintura do Gustave Doré, a cores, apesar de normalmente fazer gravuras a preto e branco.
As da Divina Comédia, do Dante, não é?
Sim, as do Dante. Mais concretamente, do Virgílio, no Inferno, com uma toga vermelha, por cima do lago verde esmeralda. Essa imagem foi sempre uma referência para este filme.
Há que ter alguma ousadia para essa referência. Por isso, pergunto se vês estas personagens dentro e algum inferno, ou, em vez disso, numa espécie de purgatório?
Eles estão todos no purgatório. Todas as personagens do filme. Mesmo quando falamos da guerra factual. Por causa do muro…
Mas tiveste o cuidado (e aqui falamos do Tourneur) de ficar fora do género…
Eu gosto das ideias de género, mas sem fazer um filme de género. Por exemplo, uma mão que sai de dentro de uma campa. Pode dizer-se que é um cliché…
Sim, do cinema de terror.
Sim, quando apresentamos um cliché ao público este tem a sensação de saber a gramática do que está a ver. Isto permite que eu possa contrariar as expetativas do público – pode pensar que ao ver aquela imagem que sabe o que vai acontecer -, mas eu fico com a oportunidade de contrariar essas expetativas. Por outro lado, uma imagem reconhecível, às vezes vale por sete ou oito. Eu acho que é possível fazer um filme de zombies sem nunca mostrar um zombie. Apenas com uma imagem dessas.
Mudando de assunto, achas que o cinema português atravessa hoje uma fase de alguma maturidade?
Sim, acho que sim. Acho que foi o digital, o HD, que mudou um pouco as coisas. De repente deu voz a muita gente que há vinte anos não teria existido. Porque teríamos de estar à espera de ter financiamento para poder filmar em 16mm. Pois ninguém queria fazer filme sem VHS. De repente aparece o HD e toda a gente pode fazer um filme. Isso trouxe uma injeção de sangue fresco. Quando eu saí da escola de cinema ainda não havia HD.
Isso numa altura em que muita gente chegou a questionar uma certa morte do cinema. Algo que se pode entender de um ponto de vista teórico.
Eu acho que o digital é uma base. Eu não gosto da fotografia digital. Acho que o digital deve ser iluminado de uma outra forma do que a película, para contrariar as tendências do digital, aquela crueza do digital. O que o digital serve é para ser pós-produzido.
E a projeção?
Não existe nada comparável a uma projecção em película. A diferença é abissal para uma projeção em DCP (Digital Cinema Package). A profundidade e a temperatura de cor… O digital nunca fará isso. Mas em termos de matéria para trabalhar foi uma revolução.
E continua a ser cinema.
Continua a ser cinema. É a revolução digital, que está a acontecer ainda. A estética do iPhone dita estilos de fotografia completamente diferentes.