Margarida Gil sobre ‘Mãos no Fogo’: “Tenho imensa confiança neste filme”

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Já nos vamos habituando a uma presença regular de cinema português em Berlim. E não só. Um ano depois do João Canijo deixar a marca do seu cinema com MalViver/Viver Mal, este ano é a vez de Margarida Gil, meter Mãos no Fogo na Berlinale. Neste caso, na secção Encounters, a mesma que deu o prémio a Viver Mal. Coisas de programação, pois esta produção da Ar de Filmes, de Alexandre Oliveira, seria bem mais calhado para a Seleção Oficial. A menos que a proposta de investigar uma certa pureza do cinema, como um artefacto, já possa ser contemplada no campo de uma ‘nova linguagem’ ou um ‘novo olhar’. Talvez.

Seja como for, o novo de Margarida Gil, permite contemplar a imagem, a tentativa de captar uma certa pureza. E logo no ambiente gótico do conto de Henry James, The turn of the screw, the 1898, numa altura em que o cinema era ainda uma arte acabadinha de nascer… Este detalhe só será irrelevante, para quem não considerar que a narrativa de Gil abraça a arte do cinema na sua totalidade. Pois a ‘ideia monstruosa do cinema’, como gosta de salientar João Mário Grilo, está presente na sua integralidade. 

A começar pela cena inicial na cozinha, com a magnífica Adelaide Teixeira, no que parece quase uma revisitação do início de Relação Fiel e Verdadeira (onde Adelaide se estreou para o cinema, em 1987). Desde logo, pela lividez espectral das personagens – Carolina Campanela, Rita Durão, sobretudo Marcello Urgeghe, mas também Ricardo Aibéo… E ao longo de toda essa deriva em busca de uma luz que a protagonista naif, Maria do Mar/Campanela, pede emprestado o nome à protagonista do filme Leitão de Barros, de 1930. Enfim, o cinema e as pequenas surpresas que, por certo, só irão surgir numa segunda visão. E que o filme sugere. E que ajudarão a contemplar melhor todo o rigor da composição a luz desenhada e captada por Acácio de Almeida. O que já não é dizer pouco. Talvez este seja um filme que nos pisca o olho a uma certa intemporalidade.

Fomos ao encontro da cineasta. No Hotel Berlin, como teria de ser. A conversa centrou-se no cinema que só se faz quando se tem de algo a dizer, mas também numa certa ligação ao seu cinema anterior.

Parabéns Margarida, pela presença de Mãos no Fogo no festival de Berlim. Já muito tempo depois de Veneza, com Relação Fiel e Verdadeira… Acho até que o filme até poderia estar na competição oficial para urso de Ouro.

Sim, caberia lá perfeitamente também. Se calhar, já não houve espaço, não sei. Mas foi ótimo ser selecionado para o festival.

Não deixa de ser interessante a presença numa secção ensaiada para projetos mais ousados e realizadores inovadores. Se calhar, uma proposta neste mundo digital que reflita sobre um significado quase ontológico do cinema até pode ser encarada como algo experimental. Será isso?

Mas isso para mim é um elogio! Porque a minha tendência natural é experimentar. Desde o meu trabalho em vídeo na televisão. Aliás, acho que nunca fiz nada igual. Até porque este filme não será assim tão experimental. Pelo menos, no sentido da procura de novas formas. Já o olhar sobre o cinema e a forma, a candura com que a Mar faz o trabalho, aquela coisa mais clássica e usando os meios mais clássicos… Sim, isso já é experimental. 

Percebe-se que esta era uma produção acertada para o Alexandre Oliveira. 

Concordo. Nunca vi o Alexandre tão envolvido. Mas ele envolve-se sempre. Ele está sempre. Talvez como foi assistente de pode sempre contar com ele. Neste filme ele estava mesmo envolvido. Ele adora o filme. 

Logo no início, na cena da cozinha, pareceu-me fazer uma homenagem, ou uma piscadela de olho, ao filme Relação Fiel e Verdadeira, concorda? 

Pois. Até a cozinha é muito parecida. Sim, o filme tem muitas coisas em comum, mas não sei bem quais são. E o papel que Adelaide Teixeira faz é semelhante àquele que tem Relação Fiel e Verdadeira, e que foi o primeiro papel que ela fez no cinema. Aliás a aquela cena em que persegue o peru poderia ter sido perfeitamente filmada nesse filme. Tem toda a razão.

Essa cena na cozinha poderia ser em qualquer época, ou num outro século…

Pois podia, apesar da Adelaide não estar vestida de época. Mas o que é incrível é que ela odeia cozinhar (risos). ‘Odeio cozinhar! Eu não cozinho!’, dizia ela. Ela é feminista realista! Tentei ensinar-lhe como se corta a cenoura, mas depois não insisti. Deixei que ela fizesse como achava… 

Mesmo aquela casa, aquelas personagens, e de certa forma até a ideia da narrativa é está próxima do seu primeiro filme…

… sim, a ideia de pertencer a um outro tempo. 

De certa forma, isso é também o cinema, não acha?

Sim, pelo menos o grande cinema. Claro que eu percebo que aqui faço uma homenagem ao Manoel de Oliveira. Uma homenagem deliberada, já se vê. 

Ia-lha fazer justamente essa pergunta, mas com essa sua referência essa homenagem fica ainda mais bonito…

Tinha de ser, tinha de ser. Quando fiz o meu primeiro filme, o Manoel de Oliveira estava completamente ausente, mas neste agora, não. É impossível a alguém com um mínimo de cultura cinematográfica visual não se lembrar do Manoel de Oliveira… Mas houve um período em que toda a gente me falava da presença do Manoel de Oliveira, das suas referências. Já era um bocado irritante. Depois passou a ser o João César (Monteiro). Agora neste, quero ver que raio de padrinho é que me vão arranjar. O João César é difícil… (risos)

Esta personagem da menina Mar, à procura de imagens para a sua tese sobre o real, parece difícil não pensar numa versão mais jovem da Margarida. Concorda? À procura da realidade das coisas para mostrar no cinema… 

Sim, eu sou muito aquilo. Embora não seja assim tão naif… Posso não ter aquela candura, porque estou por trás. Aliás, acho que estou muito distribuída neste filme, em vários personagens. Mas aquela forma de acreditar, sendo restrita, e depois perdendo as suas manias. Em seguida, ir à procura da luz do sol… Eu sou um pouco aquilo. Hoje já não sou tanto, mas era assim. 

Diria que este filme tem algo de ‘primitivo’, no sentido da origem do cinema, pois em alguns planos parece estamos em descobrir a luz da lanterna mágica…

Pois… Sim, mas isso escapa-lhe a ela o tempo todo. Ela vai atrás, mas depois descobre que a luz já se foi. Essas coisas são brincadeiras, mas são brincadeiras sérias para explicar os sistemas feitos.

Brincadeiras com a luz que, imagino, só poderiam ser feitas pelo Acácio de Almeida…

Claro é tudo fabricado (risos). Essas brincadeiras para o Acácio são um desafio. Pode ser muito diferente filme para filme. Nós não tínhamos ideias feitas. Eu tenho muita confiança nele. Às vezes faço desenhos, às vezes faço-lhe uma aguarela. Neste caso disse-lhe que não sabia ainda muito bem. E pedi-lhe ajuda.

É isso a arte criativa.

Eu faço pintura, cerâmica e trabalho quase às escuras. Não gosto nada de saber o que é que vou fazer assim perco logo interesse. Acho mesmo um processo perigoso. Aliás, eu era sonâmbula em miúda. Há cenas neste filme que foram sonhadas. Eu estou tão habituada a isso. A curta-metragem que fiz nos Açores ( Cavaleiro Vento, 2022) foi feita toda ela a partir de um sonho. 

A referência ao Buñuel, que faz no filme, não é por acaso…

O Buñuel ele é o meu vício. É o meu cineasta. Ele e o Renoir. E o Godard, claro. Mas o Godard é diferente. Agora o Buñuel, ele é sempre. 

Já a referência ao Douglas Sirk, não estava à espera…

Sim, isso já é mais complicado, porque é um melodrama. Tal como a referência ao Leo McCarey. Isto porque ela estava já a entrar no registo que poderia ir dar ao Douglas Sirk. Claro que ele é fabuloso, mas não é o meu cineasta. E ela não pertence ao universo do Douglas Sirk. Foi isso que eu quis dizer, mas também é uma forma de a tratar mal. Porque ele está a maltratá-la. Ele (Marcello Urgeghe) é uma personagem sinistra.

É curioso como a ideia de tempo está totalmente elidida. Com se não existisse, ou não fosse identificável.

Completamente. Como na Relação Fiel e Verdadeira. Eu não quis. Aí há uma referência ao 25 de Abril, mas é quase um anacronismo. Aqui é algo muito acentuado – não quero marcar o tempo. 

Se calhar, tem a ver também com o próprio cinema…

Acho que era importante neste tipo de universo. Para já, aquele sítio é mesmo fora do tempo. E aquela zona vive fora da história do tempo. Aquela casa está preservada há 400 anos. E é única. O turismo não lhe tocou. Aquela cozinha é assim há 400 anos. Quanto estamos em Ponte de Lima é óbvio que aquilo é agora. Mas é um ‘agora’ quando? E para quê? 

E agora, imagino que está com expectativa de que o filme chegue ao seu público? 

Eu tenho. Deve ser meu lado Carolina (Campanella), o meu lado ‘Maria do Mar’. Eu sou sempre bastante esperançosa, mas neste caso particularmente. Posso enganar-me redondamente, mas tenho imensa confiança neste filme. Se calhar, com outros filmes não valeria a pena ter confiança, mas neste tenho.