Eureka: o ato de resistência que descoloniza o olhar

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E se o título do filme do argentino Lisandro Alonso servisse de convite para nos fazer acordar uma ideia de cinema? Talvez até a ideia de um cinema que colonizou o olhar. É um pouco por aí que Eureka desafia as convenções, dentro desse ritmo de slow cinema, dir-se-á, um ritmo ancestral. E slow também foi o árduo processo de produção, no país de Javier Milei, razão pela qual a engenharia financeira demorou mais do que o desejado e se alongou por diversas latitudes, até por Portugal. Contudo, é também esse país feito de teimosia de cinema e que nos deu, ainda recentemente, pequenas pérolas como Trenque Lauquen, de Laura Citarella, ou Os Delinquentes, de Rodrigo Moreno.

Absorvamos então este lado metafísico e contemplativo, entre o documental e o experimental, que nos deslumbra e acompanha ao longo de perto de duas horas e meia. Aliás, um ritmo introspetivo e metafísico que se liga aos anteriores. Desde logo, o sereno e austero tríptico sobre a solidão, La Libertad (2001), Los Muertos (2004) e Liverpool (2008), todos eles sem aposta de estreia entre nós. Quase uma década depois de Jauja (2014), Lisandro regressa ao cinema com este Eureka, apresentado em Cannes em maio do ano passado, escrito em parceria com os compatriotas, Martín Caamaño e Fabian Casas, e coproduzido pela lusitana Rosa Filmes, de Joaquim Sapinho. Razão também porque o filme foi, parcialmente, rodado em Portugal. É, aliás, o cenário da praia da Ursa, junto ao Cabo da Roca, que abre o filme. Serve de wild west, em fotografia a preto e branco e formato de ecrã 4/3, onde a breve (mas tremenda!) Luísa Cruz (As Mil e Uma Noite, Rabo de Peixe) nos arrebata no papel de uma freira que já parece ter visto tudo. Ela transporta de carroça até à cidade, Viggo Mortensen, num regresso ao cinema do argentino, após Jauja, embora num papel onde se percebe que o próprio se sente à vontade. Também por lá andará Chiara Mastroianni, entre vários não atores. Na verdade, a esmagadora maioria dos participantes.

Não deixa de ser curiosa a solução encontrada por Lisandro ao confrontar-nos a nós próprios com a presença dos dispositivos (ou seja, o pequeno ecrã, aquele antes da chegada dos dispositivos portáteis, mais pequenos ainda), sobretudo ao percebermos que a presença de Mortensen se irá reduzir à imagem emitida por um aparelho de televisão no seio da reserva índia Pine Ridge, dos índios Ogala Lakota, no Dakota. Será esta a forma de Alonso nos remeter para o outro segmento, mas também de nos dar uma pista para esses códigos do olhar colonizador.

Alaina, em registo de género, comunicando através da rádio o quotidiano plácido na reserva Pine Ridge.

O que Lisandro sugere é uma hipótese de leitura, mesmo quando parece mostrar-nos o contrário. É o que sucede no segundo segmento, o central, em que seguimos a rotina da agente da polícia, Alaina (Alaina Clifford), no patrulhamento da reserva Pine Ridge a qual pertence. O que mais perturba nesse segmento é o tom monocórdico dos seus diálogos, sempre num sotaque excessivamente urbano (excessivamente colonizado?), devidamente mergulhado num ambiente de desalento e monotonia, ligado ainda a situações de alcoolismo, pobreza e tentativas de suicídio, ou até à eventual prevaricação ligeira, que a agente lida, sem nunca levantar a voz, acompanhados de plácidos e prolongados registos de áudio entre a central de comunicação. 

A sua filha, Sadie (Sadie Lapointe), também ela índia, coach de basketball no liceu, é igualmente o resultado da socialização e absorção colonial. Ela que, na sequência central do filme, irá receber do avô, um ancião da tribo local, um ‘código’ de vida, segredando-lhe que é o ‘espaço’ que importa, não o tempo, pois isso é ‘invenção dos homens’. Será esse o elemento a fazer a jovem embarcar na sua própria viagem, talvez sob a forma de uma ave que simbolicamente une as histórias (e as geografias), deslocando-se ao longo de outros territórios afinal de contas o território ocupado (e adormecido no tempo). 

É nessa aura e misticismo que Alonso nos oferece as mais belas imagens, em fusões de planos ou superfícies e geografias, como que traduzindo os argumentos da tese índia, enclausurada nos ditames da modernidade. Leva-nos até ao Brasil, onde decorre o terceiro segmento, mesmo que já sem o efeito hipnótico do anterior, junto a uma tribo da floresta onde os nativos comentam, em jeito de terapia, os seus sonhos à volta de uma fogueira. E se, afinal de contas, tudo não passasse de um sonho índio? Um sonho que ousou encarar a usurpação do seu lugar pelo outro. Não será isso a ‘eureka’ do filme? O sonho como um ato de resistência?