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“Se fazemos filmes sobre pessoas temos de ser políticos”, refere a voz de Ken Loach logo no início deste valioso e oportuno documentário de Louise Osmond, que recupera o início de carreira de um homem simples que se tornou num dos mais importantes realizadores britânicos. É, de resto, Tony Garnett, o seu produtor de sempre, quem o descreve este homenzinho que mais parecia “um empregado de balcão de um banco”, quando o conheceu e pouco antes de ambos embarcarem nessa aventura de fazer filmes com significado no Reino Unido. Mas este é também um documento tocante sobre o cineasta assumidamente de esquerda, amado por uns e repudiado por outros, como por certa imprensa mais liberal, em que um jornalista assumira não ter visto os seus filmes, mas não deixando de o comparar a Hitler, argumentando, “não preciso de ler o Mein Kampf para perceber que era um homem odioso”.
Assim viajamos na biografia deste homem de 80 anos, de semblante afável e franzino, com um particular gosto pelos musicais, que haveria de colocar o realismo na televisão e no cinema britânicos. Ele que beneficiou da criação do canal BBC2, mais destinado a uma programação popular, e da aprendizagem rústica a ‘mexer’ nas câmaras, para sair para a rua e observar os mais desfavorecidos nesse início dos anos 60. Em particular os filmes em estilo de cinema verité integrados na série The Wednesday Play, como Cathy Come Home, concebido há precisamente 50 anos, num adequado preto e branco, que poderá muito bem ser considerado como a base temática em que assentará o seu discurso. Nele acompanhamos a deriva de Cathy, na entrega perfeita de Carol White como a mulher que perde a casa, o marido e até os filhos para um sistema de saúde impenitente.
Nesse sentido, Eu, Daniel Blake, que também entreia esta semana, acaba por ser talvez por ser o registo com maior ligação a esse telefilme, cuja rodagem Louise Osmond acompanhou e nos mostra o Sr. Loach a dar as primeiras indicações aos atores prestes a conceber o filme que ganharia a Palma de Ouro em Cannes, dez anos depois de ter vencido com Brisa de Mudança. Mas há ainda em Versus, aquele período em que a política de Thatcher ocuparia os anos 80, significando também para Loach as portas fechadas aos apoios de produção, restando-lhe a via dos documentários baratos e fortemente politizados. De resto, seria nessa altura que Loach cometeria um dos seus pecados assumidos, quando teve de fazer spots publicitários para a MacDonald’s para sobreviver. O mesmo realizador que assumiria uma outra contradição, a de ter sido conservador nos seus tempos de liceu…
O documento mostra ainda Loach como o homem do êxito inesperado de Kes, de 1969, o filme sobre a singular relação de um miúdo com uma ave, que o afirmaria no segmento cinema, onde o ator David Bradley recorda essa cena fulcral em que um grupo de miúdos era castigado, e onde o cineasta capta o olhar de dor e surpresa ao verificar que a palmatória cumpriu o seu desígnio. Isto antes de Agenda Secreta celebrar, em 1990, o filme que consumaria a sua afirmação em Cannes e que o tornaria num habitué da Croisette, com a esmagadora maioria dos seus títulos em competição para a Palma de Ouro.
Versus é, por assim dizer, o documentário do homem contra o Sistema, do cinema de urgência em face da gritante realidade.