Valha-me São Jorge! Era esta a súplica do boxeur antes de avançar para o quadrado do ringue e preparar-se para sair de lá esmurrado. Por isso apela aos santos, quando a fortuna lhe foge. Afinal de contas, uma realidade que não é muito diferente daquela que enfrenta no espaço bem mais livre do bairro onde esse excesso de liberdade não lhe retira o trauma de não saber o que fazer com o tempo livre e a falta de dinheiro. É esse o quadro de austeridade, devidamente localizado no tempo, com a intervenção da troika a tomar conta das contas do Estado, que Marco Martins impõe e afirma esta personagem de pugilista que é também um saco de pancada.
Achas que isso me dói?, dirá ao filho procurando sossegá-lo, ao mesmo tempo que lhe estende a face para receber o seu murro franzino. Este é apenas só um dos contornos de São Jorge, no regresso à ficção de Marco Martins depois de se estrear com Alice, há já mais de uma década, e quase oito anos depois de Como Desenhar um Círculo Perfeito. Jorge parece servir mais para dar corpo à realidade de um país espancado e resgatado pela troika, num filme que assume esse espectro e arrisca uma ficção, mas sem que verdadeiramente essa realidade seja livre do documento desse país de gente à deriva sem saber o que fazer. O que importa é que se trata de um dos registos mais vigorosos do recente cinema português.
De resto, Jorge está cercado por outras arenas, como a do seu pai (José Raposo), que o educou para o boxe, a da mãe do seu filho (Mariana Nunes) que engravidou para regularizar a sua situação em Portugal, mas que ameaça levá-lo de volta para o Brasil, da própria profissão, em part time, como cobrador de dívidas difíceis, que cumpre contrafeito. O círculo é quase perfeito.
É claro que em Jorge existem alguns ecos de Belarmino, de Jake LaMotta ou Rocky, se bem que Marco Martins aflore apenas o género de filme de boxe para abrir um quadro social mais vasto e preciso, mas em que a trampa da cidade nos faz até recordar o Travis Bickle de Taxi Driver, se bem que sem essa componente de vigilante. De resto Jorge, como Nuno Lopes, têm habitado esse mundo, ainda que sob a condição de observadores. Jorge participa nas ações de cobrança, mas remete-se a uma presença comprometida, ao passo que Lopes atravessou com Marco Martins esse percurso de Alice até São Jorge, passando ainda pela realidade embrenhada em Sangue do Meu Sangue, de João Canijo.
Antes ainda de se impor este buraco negro da austeridade, mas também mais light, abordado por As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, já Pedro Costa havia trilhado este realismo lusitano que acontece para lá do sossego da classe média, no bairro das Fontainhas, desde Ossos, no final dos anos 90, ainda em plena euforia económica, e continuado depois na sua filmografia subsequente, como se fosse personagem omnipresente. Só que a partir de agora teremos obrigatoriamente de referir São Jorge para citar o melhor cinema de causa. Tão somente porque é um dos melhores filmes lusitanos dos últimos tempos. Seguramente desde os tempos de crise.
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