O realizador politicamente implicado aposta num cinema de causas a admitir certos efeitos. Porque, segundo ele, a democracia não é só votar e ficar sentado no sofá a ver reality shows.
Raoul Peck é um homem deste tempo. Não só da América que deixa de ser de Obama e passa a ser de Trump, mas também da Europa que parece também seduzida por um nacionalismo que poderá rimar com alguns ‘ismos’ nefastos. Em O Jovem Karl Marx, que agora chega às nossas salas, atreve-se a regressar onde tudo começou, ou seja, ao Manifesto do Partido Comunista, um outro ‘ismo’, até à identificação dos princípios capitalistas que Peck considera gerarem nefastas consequências e vícios atuais; mas refletiu também sobre os ecos do seu outro filme, Eu Não Sou o Teu Negro, o tal documentário que foi nomeado ao Óscar (estreia em maio), onde aborda o privilégio de raça através dos textos e persona do ativista político William Baldwin. Na entrevista que fizemos ao realizador haitiano, no passado festival de Berlim, foram passadas em revista as implicações de ambos esses filmes estranhamente orgânicos.
Porque decidiu escolher este momento preciso na vida de Karl Marx, durante a sua juventude até à edição do Manifesto do Partido Comunista?
Talvez porque este foi talvez o momento que teve mais impacto naquilo que eu queria mostrar, aquele processo de raciocínio e aproximação à sociedade que mudaria todo o mundo. Esta aproximação não foi apenas feita por dois lunáticos (Marx e Engels), foi um processo baseado na realidade, com uma análise da sociedade. Desde logo pelo livro que Engels escreveu sobre os trabalhadores britânicos – e que Marx considerou fenomenal – encarado como um trabalho duro de pesquisa. O Engels passou muito tempo a fazer inquéritos e recolher material empírico. O trabalho de Marx baseou-se sempre no empenho de muitos outros cientistas, economistas ou filósofos. Portanto, para mim, este filme é importante para mostrar todo esse processo.
Acha que este tema continua a ser contemporâneo, mesmo depois da anunciada morte do comunismo?
Claro que sim. Para mim é a base. Eu sou aquilo que sou hoje devido a essa estrutura que adquiri quando era ainda jovem a estudar o trabalho do jovem Marx. Estudei em Berlim, nos anos 70 e 80, e essas ideias eram necessárias para nos confrontarmos nós próprios e com esses livros. É o nosso passado e o nosso presente. E faz parte do conhecimento geral, até porque permite compreender a sociedade em que vivemos.
Em todo o caso, o capitalismo de hoje é bastante diferente do capitalismo do período que retrata o filme…
Tomemos então, por exemplo, o Manifesto do Partido Comunista, alguns dos artigos descrevem com detalhe a crise de 2008. É quase um livro para crianças sobre a história e evolução do capitalismo até hoje. Que outras provas necessitamos? Voltando à pergunta inicial e ao momento que escolhi, porque quis regressar aos fundamentos e instrumentos. Talvez essa seja esse o seu maior legado. O instrumento para analisar de forma mais precisa a nossa sociedade. Também como é hoje. Eu não fiz um filme sobre o passado; vou ao passado para buscar instrumentos e compreender porque o Trump foi eleito.
Era precisamente aí que queria chegar. É que este pedaço de história política é particularmente relevante hoje em dia. E ainda mais nos Estados Unidos. Que tipo de impacto espera que o filme possa ter na sociedade?
Espero que muitas pessoas, em particular os jovens, se possam rever nesta procura, que possam encontrar, não uma receita, mas uma resposta para combater aquilo que se passa hoje. Porque estamos exatamente no mesmo tipo de capitalismo, onde o dinheiro e a riqueza ficam cada vez mais nas mãos de poucos ao passo que uma imensa maioria ficará cada vez mais pobre. Isto é a História a repetir-se. O que o Marx nos forneceu foi um instrumento científico para compreender e analisar cada momento desta sociedade. Um momento que começou com a revolução Industrial e que continua até hoje.
De que forma este filme e o documentário Eu Não Sou o Teu Negro se interligam?
Ambos os temas mudaram a minha vida e em épocas próximas. Conheci o trabalho de William Baldwin quando era ainda muito jovem, com 17 anos; e descobri Marx aos 18 anos. Ambos estruturaram a minha mente; de uma forma diferente. São, por assim dizer, as duas pernas com que caminho. No meu filme, Baldwin diz que “o branco é uma metáfora do poder”, o que é uma outra forma de dizer “Chase Manhatan Bank”. Os analistas de Marx não dizem nada de diferente, apenas encaram numa perspetiva semelhante. A raça é apenas uma emanação do capitalismo. É como o tema dos refugiados; não se trata da cor dos refugiados, é o capitalismo a fazer o seu papel, ou seja, a separar pessoas, dividindo-as e uma certa classe a proteger os seus privilégios.
Eu Não Sou o Teu Negro foi nomeado para um Óscar. Qual é a importância que dá a essa distinção?
Enquanto cineasta é importante ser reconhecido pelos meus pares, mas ao mesmo tempo já tenho idade para não ser abalado por essa ideia. Foi bom, mas o mais importante é trazer a obra de Baldwin, um autor acutilante, uma mente brilhante, extremamente relevante hoje em dia. Tudo o que ele diz no filme foi escrito há 50 anos atrás. Tem o mesmo peso do que se tivesse escrito hoje essas palavras. Por aí conseguimos analisar toda a situação do que se passa hoje na América. Para mim, foi importante voltar a essas referências fundamentais. Hoje vivemos num mundo estranhamente nublado, onde não sabemos bem o que são notícias ou eventos falsos, o que é opinião, quando um Presidente pode afirmar que o aquecimento global não existe.
Em que momento na sua vida decidiu abandonar a agenda de ativismo politico e passar a ser também um cineasta?
Eu vim para a Alemanha com 18 anos, que era um país muito político mas também cultural. Não foi imediato que o cinema pudesse ser um veículo político. Entretanto, estudei engenharia industrial e iniciei depois um mestrado. Provavelmente seguiria uma carreira nessa área. Entretanto, decidi fazer um exame na escola de cinema. Mas sempre com a ideia de regressar ao Haiti e usar o cinema não como entretenimento, mas como forma de transmitir conteúdo. E cheguei numa altura após uma geração anterior empenhada num cinema militante.
E como eram as coisas no seu pais nessa altura?
Nessa altura, vivíamos uma ditadura no Haiti. O Jean-Claude Duvalier, o “baby doc”, era Presidente. Um grupo de estudantes que tinha vindo antes de mim, regressou ao Haiti, mas foram todos mortos. A CIA já tinha informado o governo que era ativista. Eu sabia que teria também de regressar ao Haiti. Regressei um pouco à arena política, na luta contra a ditadura. Muitos dos meus amigos eram pessoas da SWAPO, ANC, da Nicarágua, Brasil, Irão, Turquia. Estávamos todos juntos na rua a lutar contra a política de Reagan. Essa foi a minha educação. Lembro-me quando estava na escola de cinema, de trabalhar na televisão e de me chamarem traidor. Isso foi nos anos 80. Nesses dias, ter um emprego na televisão era considerado um “vendido”. Imaginem agora…
Acha que aquele momento, no filme, em que se preparava uma revolução pode estar também para chegar?
Para quem sabe, a revolução de 1848 acabou em desastre. Foi o acordar de toda a Europa, mas a repressão foi tremenda. É um processo que avança e recua, mas não é sempre retrocesso. Faz parte do processo, mas o processo somos nós. Nós é que decidimos o que fazer. A resposta a Trump é a manifestação, claro, mas passado esse momento, o que podemos fazer? Isso dá trabalho.
Esse é um processo que já dura há algum tempo…
Sim, nos EUA começou em 1973 com a primeira crise do petróleo; a Europa e o mundo ocidental foi abalado, porque foi um ataque a toda esta construção; 80% da produção foi para a Europa e EUA, mas os nativos revoltaram-se. O que acabou em crise económica. Entretanto tivemos Reagan, Thatcher, com a destruição dos sindicatos e organizações progressivas. Tudo isso tem consequência. Por isso, hoje quando os movimentos “Black Lives Matter” ou “Ocuppy Wal Street” iniciam um protesto não têm a mesma liderança, pois os sindicatos não têm a mesma força financeira que antes para assegurar a eficácia desse movimento.
Não deixa de ser curioso o final do filme, em que diversas revoluções se conjugam ao som do tema de Dylan, Like a Rolling Stone. Foi propositado?
Claro. É a mesma História. Está tudo ligado. Eu mostro a crise de 1929, mostro o Vietname, Mandela, Che Guevara, o Muro de Berlim…
Acha que a Presidência de Obama foi um progresso?
Sim. Mas a mudança foi estrutural. O Baldwin tem uma frase sobre o Obama, embora não seja sobre o Obama, claro. O jornalista perguntou-lhe como seria quando tivesse o primeiro Presidente negro. E ele respondeu que a questão não era quando, mas de que país seria esse Presidente. No sentido de saber se as pessoas se levantam par afazer alguma coisa ou se ficam a observar o que se passa. Nos EUA se não tivermos influência sobre os congressistas os “lobbys” terão. A democracia não é votar e ficar no sofá a ver reality shows. Isso não é democracia. A democracia é feita de cidadãos ativos, em que se questiona tudo.
Fala de democracia, mas a televisão, o cinema e até a internet não nos transformam também hoje em meros espetadores?
Isso faz parte da nossa indústria, claro. No meu filme, Baldwin viveu numa altura em que existiam apenas três canais americanos nacionais. Ou seja, a indústria trabalhou da mesma forma que os narcóticos. E isso foi antes de todos os reality shows. É esse o desenvolvimento dos media capitalistas. É o mundo das grandes companhias. Por exemplo, o tipo de liberdade argumentativa que os jornalistas têm hoje já quase não se vê. É esta a realidade. Por isso é mais difícil de lutar. Ficámos mais preguiçosos, mas sabemos que depois a queda do Muro de Berlim, o capitalismo venceu e não há nada a fazer. Não há mais história. Só que a crise de 2008 acordou-nos. Mas também fez com que muitos jornais económicos colocassem Marx na primeira página. Se calhar, ele tinha razão… Agora vem Trump que quer desregulamentar tudo outra vez. Porquê? Porque não demos uma resposta. Ainda estamos letárgicos, sem organização.