Jorge António é um homem do cinema, entrincheirado entre a produção lusitana e angolana, e dividido entre o documentário e a ficção. Entre a sua última (e primeira!) longa metragem, O Miradouro da Lua, realizada há quase um quarto de século, em 1993, o realizador de 52 anos esteve ligado a diferentes projetos de curtas documentais e, mais recentemente, a trilogia Angola – O Nascimento de uma Nação, em parceria com Maria do Carmo Piçarra. Um regresso que se saúda e que promete ser complementado pelo trabalho de correalização de uma animação para adultos, com José Miguel Ribeiro, intitulada Noyola.
Nesta adaptação do romance Os Senhores do Areal, do escritor angolano Henrique Abranches, Jorge António começa forte, dominado pelo peso imponente da região, chegando mesmo a sugerir-nos, aqui e ali, uma leveza próxima do cinema de Terrence Malick, reforçada pelo misticismo daquela terra com ressonâncias que nos acordam a memória de diversas produções americanas recentes e que dispensam referência. É também aqui que vemos um intenso Nicolau Breyner, numa das suas derradeiras prestações, a dominar os escravos pelo medo. Eu sou o Diabo, grita, numa brutal e intimidante cena.
Certos mistérios são difíceis de explicar, escuta-se logo no inicio do filme. É este o início do novelo por onde se constrói a elipse entre uma prisão colonial a sul de Angola, em meados da década de 50, e uma amaldiçoada herança canina deixada seis décadas mais tarde, convertida numa matilha assassina nesse ilhéu onde fora a tal prisão e agora está projectado um condomínio de luxo. A leitura é suficientemente rica para múltiplas interpretações dos sinuosos percursos da História, em que os senhores de outrora se convertem em súbditos do poder do dinheirosas em que os espíritos dos fantasmas permanecem inquietos.
A continuidade lógica de cruzamento da cultura portuguesa e angolana permitiu então essa geração de descendentes que cresceram com a riqueza da região e que se tornaram nos “tugas” que agora se submetem e chamam Dr. aos novos senhores da região. Como sucede com Pedro Mbala (Miguel Hurst), o executivo africano de uma poderosa construtora, descrente na democracia, e cuja perda de pigmentação na pele (do ator) permite que a personagem declare concretize essa mutação de forma profundamente irónica – “estou a ficar branco!”
A Ilha dos Cães é um trabalho meritório de Jorge António, coadjuvado com uma produção segura de Ana Costa, integrando preocupações de fantasia, suportadas por algum misticismo e efeitos especiais. Ainda que se sinta que o projeto vá perdendo parte da energia com que iniciou. Como se a visão global do filme, os meios ou do orçamento, tivessem comprometido o processo. É um inegável filme de género que merece ser visto, com a particularidade de não ter de ceder na linguagem do formato televisivo para ganhar uma dimensão mais popular.
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