No ano em que se assinala o centenário das aparições de Fátima, o novo filme de João Canijo acompanha 11 mulheres transmontanas numa peregrinação até ao Santuário. A ficção e a realidade misturam-se neste retrato de determinação, dor, sacrifício e fé.
Ouve-se o som da água a cair. Estamos no interior de um balneário público. O corpo feminino está descoberto, numa crueza e despudor que, no primeiro instante, nos causa espanto e, no segundo, discernimento por percebermos que esta exposição não surpreende. Porque estas onze mulheres que vemos nuas no grande ecrã estiveram, afinal, sempre despidas nas duas horas de Fátima, o novo filme de João Canijo sobre a peregrinação de um grupo de transmontanas até Fátima, a propósito das festividades do 13 de maio.
Esta é uma das cenas mais fortes da longa, um projeto que ocupava a mente do realizador desde Sangue do Meu Sangue (2011). Uma sequência só possível graças à intimidade de Canijo com este elenco de luxo: Rita Blanco, Anabela Moreira, Cleia Almeida, Vera Barreto, Teresa Madruga, Ana Bustorff, Alexandra Rosa, Teresa Tavares, Íris Macedo, Sara Norte e Márcia Breia. Anabela Moreira e Rita Blanco têm, por defeito, destaque – a ligação ao realizador em trabalhos anteriores já o previa. O protagonismo dado a ambas é justificado com a competência das interpretações, ainda que se possa alegar que mostrar tanto de ambas nos deixa a desejar entrar mais a fundo no mundo de outras, como é o caso de Vera Barreto, uma surpresa que se revela em pequenas grandes ocasiões, como o relato da experiência emocional (e extremamente cómica) de utilizar uma casa de banho limpa ao fim de vários dias.
Tal como o sotaque de Rita Blanco não deixa enganar, é de Vinhais, Bragança, que parte a peregrinação mais longa até Fátima. São mais de 400 quilómetros, caminho que as atrizes percorreram para criar esta obra que oscila entre o ficcional e o documental. Há uma proximidade com estas onze mulheres, que riem, choram, e captam imagens com os telemóveis para mais tarde recordar. É de um realismo tal que, em dados momentos, tendemos para a ilusão de que estamos a assistir a um documentário sobre um grupo de mulheres comum que se submete a este desafio – porque no mundo real, quantos não há? Há bolhas, dores nas costas, pernas inchadas, calor e todas as adversidades por que passam milhares e milhares de pessoas que se deslocam a pé todos os anos até ao Santuário. No fundo, Fátima é um retrato do sacrifício em nome da fé.
Mas apesar do título e do mote, Fátima tem muito pouco de sobrenatural ou divino, espiritualidade ou fé. O filme de Canijo não tem a pretensão de falar do transcendente. O foco é o que acontece em Terra: as relações humanas e o crescente cansaço físico e psicológico que vai despoletando conflitos e atritos entre as personagens que partilham um ambiente de sacrifício e superação. A sequência final será, porventura, o único momento em que a vela do divino se acende e se multiplica. E para crentes e não crentes, há uma indiscritível sensação de conforto ao ver a comoção destas mulheres na chegada ao seu destino.
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