Gloria é daqueles filmes que vale bem mais do que o próximo blockbuster. Esta comédia muito negra de baixo orçamento assinado pela dupla Kristina Grozeva e Petar Valchanov, aqui na sua terceira longa em conjunto, assenta numa ideia simples demais, ainda que plena de implicações sociais e políticas com o condão de nos prender do início ao final. O facto de ser um dos poucos filmes búlgaros que chegam ao mercado internacional torna Glória ainda mais apetecível. O seu percurso foi iniciado o ano passado ao lado de O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues, e Correspondências, de Rita Azevedo Gomes, no concurso do Festival de Locarno, curiosamente, onde outro búlgaro (Godless, Ralitza Petrova) venceria o Leopardo de Ouro.
A descoberta ocasional de um saco cheio de dinheiro por parte de um trabalhador dos caminhos de ferro búlgaros serve de isco para passar em revista alguns dos tiques e pecados sociais, e não necessariamente exclusivos dos Balcãs, em que a fronteira da corrupção vive paredes meias com a oportunidade e o oportunismo da comunicação social faz o seu papel. Só que ao entregar este pequeno tesouro ao Estado, o reservado, espartano e gago Tzanko Petrov (Stefan Denolyobov, um ator já maduro, descoberto por esta dupla de cineastas) entra num circo em que todos querem brilhar, exceto o próprio. Gozado pelos pobres e olhado com sobranceria pelos outros, Tzanko é encarado como uma espécie de ovni social.
Na verdade, ele nem é o verdadeiro protagonista, já que grande parte da atenção repousa no papel da responsável pela comunicação do governo, a dominadora e multitask Julia (Margita Gosheva), numa permanente ginástica para agradar o ministro, gerir a sua equipa, o marido e a sua vontade em engravidar. No meio disto tudo, cria também um problema com Tzanko ao substituir-lhe o seu relógio de estimação por um novo, mas que se atrasava, como recompensa do seu feito heróico. É por aqui também que o guião, desenvolvido também por Grozeva e Valchanov, se enriquece embora sem nunca cair no lugar comum, não poupando sequer os media, quando o suposto jornalista de investigação acaba por revelar uma agenda não muito diversa dos ‘jornalismo amarelo’ que supostamente critica.
No momento em que a singularidade deste homem se coloca diante da máquina burocrática e política do sistema já tínhamos percebido que estávamos demasiado próximos desse formalismo kafkiano tão vincado, com a particularidade da narrativa nos colocar obstáculos pelo caminho ao nunca procurar adocicar o perfil deste herói involuntário, ao mesmo tempo que fornece uma imagem quase agradável da mulher de ação que se esgota no profissionalismo e se perde em relação às suas prioridades, deixando mesmo para o marido extremoso a responsabilidade da complexa inseminação artificial que lhes poderá dar um filho desejado.
O jogo dos realizadores é refrescante e assume de resto uma proximidade narrativa e estilística com os manos Coen de Fargo, ou até, se quisermos, um certo idealismo puro próximo do defendido por Frank Capra, mas onde nem sequer a tristeza involuntária de um Chaplin está ausente na marcante personagem deste “idiota social”. No entanto, é mesmo o final brutal e inesperado que acaba por colocar uma cerejinha no topo deste filme sobre a incerteza de um futuro que cresce em lume brando. Hilariante e brutal em doses semelhantes. Claramente, o filme a não perder numa semana de estreias que promete ser dominada por uma múmia digital.