“Os vagões tristes transportaram-me para este lugar. Vêm de toda a parte: de leste e de oeste, do norte e do sul. De dia como de noite, em todas as estações: Primavera, Verão, Outono, Inverno. Os comboios chegam sem percalços, incessantemente, e Treblinka prospera a cada dia que passa. Quantos mais chegam, mais Treblinka consegue absorver.” in Sou o Último Judeu, de Chil Rajchamn
Estreia finalmente o filme sobre a memória e os fantasmas do Holocausto. Finalmente, porque Treblinka foi um projeto conturbado que Sérgio Tréfaut desenvolve há já vários anos. E também porque está já pronto há mais de um ano – foi o filme português vencedor da edição do IndieLisboa, de 2016. Ainda assim incontornável esta narrativa sobre o indizível, o indiscritível horror vivido pelos campos de extermínio nazi, como Treblinka.
Embarcamos agora nesta viagem de um comboio sensorial que fará algumas paragens pela memória mais negra da História. E não precisará das imagens para evocar esses fantasmas difusos.
Chega também ao final esta viagem de Sérgio Tréfaut e as vicissitudes de um projeto que começou por ser uma viagem de comboio no Transiberiano, com Isabel Ruth e uma equipa mínima e que acabou por ser um filme em três fases. Foi no final desta viagem que nos encontrámos com Sérgio e Ruth no festival de cinema Spirit of Fire, em Khanty Mansiysk, na Sibéria, em 2013, onde Trefaut haveria de presidir ao júri. Nessa altura, o projeto centrava-se nas memórias de Marceline Loridan-Ivens, sobrevivente do campo de Birkenau, e depois mulher do documentarista Joris Ivens, por sinal, uma referência central na descoberta do cinema de Tréfaut.
Entretanto, essa viagem de comboio sofreria uma alteração de percurso, passando a seguir a memória de outro sobrevivente, neste caso de Treblinka, o polaco Chil Rajchaman, ancorada no seu livro Sou o Último Judeu (editado pela Teorema), motivando outros elementos que Tréfaut relata na nossa entrevista. Antes de terminar, Sérgio revelará ainda os contornos do seu novo filme, O Pão, adaptação de Seara de Vento, de Manuel da Fonseca. Sempre com Isabel Ruth, claro.
Quer descrever um pouco a evolução deste projeto que já tem alguns anos? Pelo menos, desde que nos encontrámos em Khanty Mansiysk, na Sibéria.
Sim, o projeto começou por ser sobre uma sobrevivente do Holocausto, do campo de Birkenau, chamada Marceline Loridan-Ivens. Numa primeira fase, até pensei que seria um documentário. Estive com ela cerca de 10 encontros, ela estava muito entusiasmada. Só que percebi que, a certa altura, seria difícil chegar a um bom porto. Então transformei o projeto numa homenagem a Marceline. Convidei a Isabel Ruth a fazer umas rodagens comigo a bordo do Transiberiano, o que seria um ponto de partida para o o filme.
São muito eficazes as imagens refratadas pelo espelho, como que a evocar fantasmas do passado…
Logo percebi que o mais rico das filmagens eram os reflexos, são reflexos dos vidros que se transformavam em fantasmas. E o que mais me fascina da Marceline, e de uma maneira geral dos sobreviventes do Holocausto ou de outras tragédias, é viverem rodeados daqueles que morreram. No fundo, estas pessoas que atravessaram o horror absoluto e que viram morrer à sua volta, dezenas, centenas, milhares, centenas de milhares de pessoas. São sobreviventes que até têm uma certa culpabilidade de estarem vivas.
São, no fundo, pessoas que já estão mortas, embora continuem a viver.
É isso mesmo. Eu parti então da sobrevivência da Marceline Loridan para perceber a relevância desse universo. Entretanto, li o livro do Chil Rajchman que depois utilizei como espinha dorsal deste filme, depois de já ter filmado no Transiberiano. A partir da leitura do Chil Rajchman percebi que conseguiria dar sentido a essa viagem num comboio através do texto de um sobrevivente. Consegui então os direitos do seu livro para construir uma viagem de comboio, que é também uma viagem do espetador, uma viagem sensorial que tinha como ponto de partida a Marceline Loridan, mas que se transformou numa viagem de um sobrevivente de Treblinka.
Na verdade, o texto é muito forte e acaba mesmo por tornar desnecessárias as palavras.
Há dois níveis, o texto e a voz, que remetem o espetador a imaginar tudo o que está a ser contado. E o da imagem que é uma viagem de comboio, mas com a presença de fantasmas, seja do reflexo ou de imaginação.
Digamos que aqui a imagem dos campos é desnecessária.
Este horror é infilmável. Existe apenas um filme que eu conheça que filmou o interior dos campos, que é O Filho de Saúl (de Lazlo Némes, que tivemos oportunidade de entrevistar). Acho que teremos de continuar a falar de algo indizível como estre extermínio, e por aqui poderia seguir um caminho tipo João César Monteiro, e mostrar um filme completamente negro, ou criar imagens evocativas. Essas imagens poderia ser um comboio vazio, mas seria um filme muito mais conceptual, ou algo que remetesse para o incómodo. Daí eu ter escolhido os corpos nus, como o ator ucraniano que nos conta na primeira pessoa o texto do Chil Rajcham na primeira pessoa, relatando a sua chegada ao campo, a espera no comboio e a vida no campo refletida em imagem. E outros corpos que são apenas evocações.
Imagino que a escolha da Isabel Ruth tenha sido mais evidente…
Sim, porque ela tem aquele fácies que permite mostrar todas as tragédias possíveis. Ela pode não gostar disso, mas é a cara que ela tem. Foi aliás fascinante assistir ao debate que aconteceu após a antestreia em que o Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de tomar a palavra para lhe dizer que era o melhor papel que lhe poderiam dar.
Tanto quanto sei, é muito difícil filmar nos comboios na Rússia. Como foi no seu caso?
O material filmado é completamente diferente num lugar e no outro. Na Rússia filmámos clandestinamente no Transiberiano. Era eu, a Isabel Ruth, o diretor de fotografia João Ribeiro, e a diretora de produção, a Catarina Almeida. E foi ela que por falar russo facilmente, por assim dizer, indrominou as pessoas dizendo que estávamos a fazer um filme sobre uma tia, que era uma escritora. Porque a primeira coisa que se encontra na Rússia quando se entra numa estação é perceber ver sinais com proibição de filmar. E antes mesmo de sairmos de Moscovo colocámos um tecido em redor da carruagem para lhe dar um ar mais antigo. Tudo isso foi feito em conivência com o staff do comboio, embora dentro da ilegalidade. Na Ucrânia foram apenas duas viagens muito rápidas, entre Kiev e Sebastopol, com uma carruagem alugada onde tínhamos mais liberdade para filmar. Na Polónia filmei eu próprio com uma micro-câmara dentro de um comboio entre um lugar e outro.
Em que sentido Treblinka pode ser visto com os olhos de hoje?
Eu escolhi como frase, quase subtítulo do filme, ‘Tudo volta a acontecer’. Sem ilusões, porque não pensamos que tudo o que acontece é semelhante à política de extermínio nazi. Mas aquele ‘nunca mais’ que é o sonho do período do pós-guerra é uma mentira. Houve genocídios sistemáticos em várias partes do mundo: na Ásia do Sul, no Camboja, no Ruanda, na Sérvia, para além de mortes sistemáticas em outros tantos lugares. Quando eu estava a montar o filme, era muito claro que quando o ISIS entrava nas universidades, em Mossul, pegava em todos os estudantes, colocava-os no chão e matava-os sistematicamente com uma bala na cabeça. Isso é diferente da política de extermínio de um povo. Mas o horror absoluto acontece sempre. Os náufragos no Mediterrâneo, os oito milhões de refugiados da Síria, são uma monstruosidade com a qual nós convivemos hoje.
Será que podemos incluir o povo palestino entre essas tragédias?
Ao mesmo tempo em que falo do genocídio dos judeus pelos nazis, fico surpreendido pela forma como nas últimas décadas o Estado de Israel que conduzido a política com os palestinos. Houve o massacre em Sabre e Chatila e tem havido massacres sistemáticos em Gaza. É claro que isso não é apenas uma política de defesa como proclama o estado de Israel. Há uma política de destruição de destruição e de não reconhecimento de direitos históricos de um povo que morou durante milénios naquele território.
No fundo, ‘tudo volta a acontecer’… Apesar de não seres uma pessoa política aceitas a ideia de que ‘o cinema é uma arma’?
O cinema é um modo de expressão. Não sou propriamente um cineasta militante. Eu faço filmes. Talvez um dia faça outras coisas. Sempre tentei que os filmes cumprissem um papel dentro da sociedade. Quando fiz o Lisboetas fiquei muito feliz que tivesse contribuído para a alteração da lei da nacionalidade, apresentada na Assembleia da República; fico muito orgulhoso que o Viagem e Portugal seja exibido pela TAP e que tenha sido tão promovido pelo Instituto Camões; que o Alentejo Alentejo seja uma espécie de bandeira para o Alentejo. No caso do Treblinka gostaria muito que funcionasse num universo escolar. Pela sua duração de uma hora, gostaria de fosse apresentado no ensino secundário porque permite a adolescente que ainda um estudo aprofundado do que foi a política de extermínio nazi.
Ela que estará também no seu próximo filme, O Pão, a adaptação da Seara de Vento.
A possibilidade de fazer a adaptação da Seara de Vento surgiu durante a rodagem de Alentejo Alentejo, em que me aconselharam a leitura desse livro do Manuel da Fonseca. Eu percebi como era importante pela história mais telúrica e pelo seu conteúdo mais social. Quando comecei a ler o livro percebi como a personagem feminina principal, a Amanda Carrusca, uma personagem totalmente torcida, era já a Isabel Ruth chapada. O que não lhe agradou muito, apesar de gostar da personagem.
O filme já está pronto?
Está quase pronto. Só não sabemos o festival internacional onde irá estrear. Por isso a estreia em Portugal será apenas posterior.
Estreará apenas em 2018?
Ainda não tenho a certeza. Talvez seja Berlim no ano que vem, mas não faço ideia. A distribuidora internacional acha que é mais um filme para Berlim. Não sei se o apresentamos antes. A diferença em relação ao Manuel da Fonseca é que há um lado romântico, apesar dele ter uma escrita muito sega. Mas há um lado romântico em que ainda existiam os “amanhãs que cantam”. Na minha interpretação, no meu filme, não há “amanhãs que cantam” para ninguém. Há ricos e pobres, e há pobres que são sempre esmagados, aconteça o que acontecer.
O Alentejo que faz parte da alma da tua família, certo?
Com certeza. O meu pai, Miguel Urbano Rodrigues, que faleceu há um mês, não só era um alentejano apaixonado pela sua terra, que me levou muito cedo a conhecer a vida difícil das pessoas de lá, como era também um comunista mais revolucionário e idealista que o conformado partido comunista de hoje. Era uma pessoa que podia estar em desacordo com o partido e com a política cubana, mas que teria pegados nas armas para defender Cuba. Eu, contrapartida, não é a falta de ímpeto para fazer as coisas, porque isso eu tenho, falta-me é a fé nos ideais. Acho que o poder corrompe e é difícil proclamar que há um futuro radioso onde quer que ele esteja.
Só para terminar, como começou essa vontade de comunicar desta forma, de fazer cinema?
Eu era adolescente quando descobri na Cinemateca um ciclo do Joris Ivens. E fiquei apaixonado por ele, foi uma espécie de ídolo para mim a partir daí. Também ajudou o facto da minha casa, ainda no Brasil, ter estado sempre cheia de jornalistas e correspondentes internacionais, do Le Monde, do New York Times, chegados dos quatro cantos do mundo. Mas ao descobrir o documentário de uma forma mais abrangente, com o Joris Ivens foquei apaixonado pelo documentário. Depois, muitos dos meus amigos faziam cinema, o que também ajudou. Isto apesar de eu estudar Filosofia, nada tinha a ver com fazer cinema. Aí comecei por escrever guiões, que não tinham nada de documental, aliás eram completamente delirantes, adaptações dos diálogos de Platão para apresentar ao ICA. Todos os meus projetos fantasiosos nunca encontravam o dia. Finalmente, foi ao escrever documentário que comecei a fazer cinema. Embora haja um acurta metragem, essa sim, completamente fantasista, que é o meu primeiro filme, em 1992, que é o Alcibíades, que foi apresentado em Locarno. Mas isso acabou por ser uma influência de muitos, Por exemplo, a Maria de Medeiros que era minha amiga de infância, e que começou a fazer filmes, bem como a Teresa Villaverde. Mas eu não entendia nada do ponto de vista técnico. Pouco a pouco, fui aprendendo o cinema fazendo.