Esta é a semana em que vamos do céu, com a A Fábrica de Nada, do Pedro Pinho, ao inferno de Aronofsky, com a sua Mae! Nestas três horas da Fábrica, um dos eventos do último festival de Cannes, onde venceu o prémio Fipresci na Quinzena dos Realizadores, fomos mesmo ao céu logo na sessão dos Lisbon Screenings, ainda decorria o IndieLisboa. Apesar de algo reticente e preparado para tudo, naquela manhã de sábado, o filme de Pedro Pinho deu-nos quase tudo aquilo que gostamos de ver no cinema. Neste caso, uma celebração que junta o realismo, o documental, o cinema verité e o musical de uma forma contagiante.
Esta visão da autogestão fabril foi inspirada numa ideia original de Jorge Silva Melo, a partir da realidade de uma fábrica de elevadores de Santa Iria da Azóia a trabalhar em regime de autogestão desde o 25 de Abril e que fechou as portas já depois de iniciado. Posteriormente, o projeto seria trabalhado por Pedro Pinho e a equipa coletiva da Terratreme, com a colaboração de Tiago Hespanha, João Matos, Filipa Homem de Melo e Leonor Noivo. Depois de colocarem anúncios nos jornais dirigidos a desempregados nessas circunstâncias foram escutando os depoimentos durante várias semanas, compilando algumas histórias, sobretudo aquelas que combinavam maior pressão nas negociações para rescisão amigável.
“O guião foi escrito com base nessas declarações”, explicou-nos Pedro Pinho após a sessão em Lisboa. “E acabámos mesmo por escolher quase todos os atores não profissionais nesse casting por serem todos tão bons”. Sempre com a consciência de que era “um filme muito importante” que tinham de fazer. No fundo, falavam daquilo que lhes tinha acontecido nas vidas deles e com as suas famílias. “Eu percebi logo na primeira reunião que este ambiente era muito forte”, confessou. “Eles queriam participar porque queriam partilhar o que tinha acontecido nas vidas deles.”
Assim se adaptou a forma coletiva de trabalho da produtora Terratreme acabando por criar uma pequena obra-prima do nosso ‘cinema de crise’, superando mesmo As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, também exibido na Quinzena há dois anos atrás. Só surpreende que o filme tenha alcançado a melhor média de críticas individuais em todas as secções. Estranhamente, só superado pelos dois episódios da série de televisão Twin Peaks.
Aqui se cristaliza a ideia do desemprego encarado como a tal “oportunidade” sugerida por Pedro Passos Coelho, mas com trabalhadores inspirados nessa experiência que não se resignam e decidem passar à ação assumindo o seu próprio destino.
Com estes elementos, Pinho aproveitou a experiência do teatro, em que participaram diversos vários atores da peça original de Judith Herzberg e encenado por Jorge Silva Melo, em 2008, no Teatro de Almada, bem como alguns trabalhadores dispensados que acabaram por trazer também para o filme as suas experiências. Foi nos cenários naturais do norte de Lisboa que a equipa de Pinho conseguiu encontrar uma fusão inesperada que consegue captar no mesmo plano o ambiente fabril e ribeirinho, com um skyline de modernidade ao fundo. E até as lezírias para um inesperado tom western, onde era possível encontrar avestruzes. Sim, foi aqui que encontrámos os melhores cenários para cinema made in Lisbon.
Ainda antes de partir para Cannes, Pedro Pinho reconheceu a validade da montra, um festival onde nunca tinha ido, mas que permitiria que o filme “fosse mais visto”. O início do percurso sinuoso desta ideia remonta a 2011, nessa altura ainda uma peça musical. “Houve várias versões do argumento”, explicou-nos. Mas depois, quando o projeto passou para mim, e para as pessoas da Terratreme, tivemos, de alguma forma, de nos apropriar da coisa.” Foi aí que A Fábrica do Nada se tornou num “projeto um bocado nosso, próximo do que são as nossas referências, do que era a nossa vontade de pensar sobre aqueles assuntos e do que tínhamos para dizer.”
“Tivemos de reescrever tudo”, esclareceu. “Deixámos algumas âncoras que vieram do processo criativo, com o Silva Melo, nomeadamente a presença de um realizador de cinema que está um bocadinho à procura de como retratar esta situação; como encontrar um discurso válido para falar do que se estava a passar em Portugal nesta altura.”
E o que se estava a passar em Portugal na altura? Era a crise da Legionela, era Pedro Passos Coelho a sugerir aproveitar “oportunidade” de não ter emprego, talvez para fazer a tal viagem ao Oriente com a família. Mas é também aquele que lhe diz: “vendes a tua dignidade por dez mil!”. Mas há também um coelho verdadeiro, que é devidamente esfolado e que arranca do pequeno Mowgli o comentário: “olha como vais ficar!”
“Este é um processo de trabalho que nós gostamos de fazer”, explica o cineasta sobre a opção de se colar a um “cinema ancorado na realidade, à procura do que está a acontecer e do que pode acontecer de imprevisto na relação entre quem está a filmar e quem está a ser filmado.” É claro que um espetador menos avisado dificilmente descortinará se se trata de ficção ou documental já é a fusão do registo. “Sim, o acting é tudo ficção”, assegura-nos. “É tudo texto, mas muito baseado na improvisação e na experiência de vidas das pessoas, dos atores. “
Apesar de nunca perder o seu lado comunitário, filme adopta o ponto de vista de um casal constituído uma luso-brasileira esteticista (Carla Galvão) e um operário e músico punk (José Smith Vargas). Juntos têm um filho que chamam carinhosamente Mowgli. O rapaz que não se amedrontará diante de um tal coelho esfolado.
Aqui se impõe um registo de cinema militante, ao mesmo tempo que conta uma história sem preocupação de métrica, e onde as três horas de duração se vêm com enorme prazer. inserindo mesmo elementos de contradição interna – a presença do realizador italiano (Danièle Inclaterra) serve para sublinhar pontos controvertidos que se deixam ficar para que a discussão seja isenta. Como cinema de inspiração social, recordamos A Lei do Mercado, de Stephane Brizé. Mas ao contrário deste, o filme de Pedro Pinho, e da colaboração de Tiago Hespanha, João Matos, Filipa Homem de Melo e Leonor Noivo ganha na sua dimensão coletiva, com muitos trabalhadores que se tornaram atores e relataram a sua experiência, conseguindo uma novidade narrativa que não nos lembramos de ver no cinema.
Não surpreende por isso que viesse a ganhar o prémio FIPRESCI, do júri da crítica internacional. Um feito que só Manoel de Oliveira conseguira com o mesmo prémio há precisamente dez anos atrás, com Viagem ao Princípio do Mundo.