João Moreira Salles explicou ao Insider a origem que motivou o intenso documento “No Intenso Agora”. Estreia finalmente no nosso país, pela Midas, depois dos aplausos em Berlim, no Cinéma do Réel, do DocLisboa e San Sebastian.
O filme nasce do fado, diz-nos João Moreira Salles, em San Sebastian, depois de assistirmos fascinados ao projeto em que não filmou uma só cena. Isto porque se trata de um documentário analítico, um essay concebido integralmente por imagens de arquivo em que o cineasta e investigador analisa a vida privilegiada da sua própria família como uma janela aberta para compreender como ocorreram alguns acontecimentos politico-sociais que mudaram um pouco o mundo.
Claro que visitamos Maio de 68, o traumático pós-Primavera de Praga, ou ainda a agitação estudantil no Brasil, a culminar até nos ecos no movimento de massas Brasil de 2013. Mas, e se tudo tivesse partido de um fait divers, do achado há mais de uma década de um rolo de película com imagens captadas pela sua mãe na China da Revolução Cultural de Mao? É o estudo, a reflexão que atravessa estes momentos em que João Moreira Salles afirma mais como jornalista do que cineasta. Por isso mesmo, este é um cinema urgente. Precisamos de mais filmes assim.
Paulo Portugal, San Sebastian
Depois de vermos No Intenso Agora (leia aqui a crítica) cresce a curiosidade de perceber a motivação que levou João Moreira Salles a conceber este filme intenso e intrigante, tão documental e realista como também sinuoso pela reflexão que esta edição de imagens motiva. Após a apresentação do autor na sessão da secção Tabalakera do Festival de San Sebastian, em setembro passado, e do fado com que termina o filme, tornou-se inevitável falar com o simpático jornalista e documentarista. É que há muito mais para saber sobre No Intenso Agora e sobre João Moreira Salles. Ele que passa por Lisboa para apresentar o filme, bem como o documentário do documentarista brasileiro Eduardo Coutinho, Últimas Conversas. E que, seguramente, motivará um novo encontro com o Insider.
Como surgiu a vontade de fazer este documentário, sobretudo dez anos depois de Santiago?
No final e Santiago fui atrás de imagens de família que precisava e encontrei numa caixa esses rolos de 16mm do material que a minha mãe captou na China, que ficaram na minha cabeça, mas como não sabia bem como usar isso acabei não usando. Entretanto, encontrei o artigo da revista que ela escreveu sobre a viagem, e é esse que é lido ao longo do filme.
O que mais o impressionou nesta descoberta?
O que me mais me impressionou foi a alegria dela, a vitalidade. Como estava alinhada com a vida, com vontade de viver e ver as coisas, a curiosidade. Uma curiosidade que ela foi perdendo ao longo da vida. Isso impressionou-me muito porque eu conheci a minha mãe já triste e ficando cada vez mais triste. Aquilo ficou na minha cabeça. Entretanto, fui-me aproximando de 68, porque a gente morava em Paris nessa altura. O meu pai tinha sido ministro do Jango, do Presidente Jango (Jean Goulart) que foi deposto. Entretanto fomos para Paris. E aí comecei a ler sobre 68 e identifiquei uma semelhança nessa dificuldade de viver depois da grande alegria.
Para além do aspeto pessoal, e familiar, não é também um pouco isso que se passa hoje, como viver depois de uma grande alegria?
Certamente, é o que se passa hoje no meu país. Em 2013 teve um grande movimento de massas, as pessoas foram para a rua, reivindicaram um estado mais eficiente, melhores serviços públicos, menos corrupção. E aquilo acabou se antecipando. A gente tem hoje um governo que é terrível, semi-democrático. Tem uma sensação de ressaca política de 2013 na geração que viveu no pensamento de 2013 que e muito semelhante ao processo de não saber como seguir em diante, como recomeçar. De um modo gera isso está ligado à vida.
O Cohen-Bendit, em 68 também, parecia ter um plano, não acha?
Eu acho que o Cohen-Bendit não se encaixa nesse perfil, porque o Cohn-Bendit teve a inteligência de se reinventar, de não querer voltar para o passado, de dizer que 68 aconteceu naquele momento, que não se pode reproduzir e que é preciso se engajar nas novas lutas. E ele fez isso. Foi das primeiras pessoas que se envolveu na luta ambiental. Ele tem uma vida. A armadilha é ficar preso à luta do passado. É reviver o que é um cadáver. E o filme é isso, uma reflexão sobre a intensidade de se reconetar com a vida.
Há um aspeto interessante na sua vida, no seu percurso. É que no fundo nasceu num berço de ouro, mas apesar de tudo conseguiu, bem como o seu irmão (Walter Salles) desenvolver uma forte consciência social, um pouco fora desse ambiente. Como é que se deu esse processo e como é que funcionou essa tua ligação com o Walter?
Nós somos quatro irmãos e nos damos todos muito bem. Somos uma família muito unida, todos os irmãos são muito unidos. Mas ao Walter devo a profissão, porque me formei em Economia, não tinha nenhuma vocação clara, mas sabia que não iria trabalhar em Economia, no mundo dos negócios. Então o Walter me convidou, assim que eu deixei a faculdade, para ajudá-lo a montar uma série de televisão. Eu fiz o roteiro e o texto, demonstrei uma certa habilidade em juntar as coisas. Aí, no ano seguinte, o Walter foi convidado para fazer uma série na China – ele já queria fazer ficção -, e sugeriu que eu fosse no lugar dele. E eu fui. Dirigi a minha primeira série para televisão, tonha 23, 24 anos de idade. E foi bem sucedida. Desde aí nunca mais parei, mas nunca foi uma vocação, como é para ele.
No fundo, o João sempre trabalhou mais como jornalista…
Isso. Criei há uns dez anos atrás a revista Piaui, que é onde eu dou batente todos os dias. Então, a minha relação com o Walter é muito próxima. A gente tem até uma produtora juntos, a Videofilmes, e nessa produtora existe uma espécie de divisão do trabalho, ele se ocupa de ficção e eu me ocupo do documentário, não só dos meus mas também de outras pessoas.
A exploração do real pode ser mito rica no Brasil, não acha?
É muito difícil você não saber o país onde você vive, quando você nasce num país tão desigual como o Brasil. A presença da desigualdade é muito visível, principalmente numa cidade como o Rio de Janeiro. Em São Paulo é um pouco diferente porque a pobreza está excluída, ela vive na periferia. No Rio de Janeiro a proximidade não dá para ignorar. É preciso ser cego, insensível, para não perceber que há uma questão que é grave.
Não se pode olhar sempre para o lado, certo?
No Rio se você olha para o lado, olha para o desigual, se olha para o alto olha para o desigual, só olhando para o mar é que não vê o desigual. Por isso as pessoas mais ricas moram de frente para o mar… (riso irónico) É claro que vivendo no mundo do cinema essa questão é muito viva. O cinema é um meio de pessoas que discutem essas questões. E a família também. Essa foi sempre uma questão discutida em casa, com os pais. Nós nunca fomos insensíveis ao que se passava em redor de nós.
Checoslováquia, Paris, Brasil… Esta ligação ao que se passava nos anos 60 é um fascinante trabalho de ligação com as imagens que já vinha de trás?
É meu filme é um trabalho sobre imagens de arquivo. Eu não filmei nada.
É um trabalho, um estudo e introspeção sobre o significado das próprias imagens.
Mas sem dúvida nenhuma. Nesse sentido, é um filme próximo de Santiago. Um filme que nasce quando começo a indagar porque é que eu filmei como eu filmei.
Isso já é um trabalho de jornalista!
É um trabalho sobre a matéria, sobre o documento. Porque é que o documento é como ele é? Posso confiar, não posso confiar? O que é que ele está me dizendo que está escondido? O Santiago nasce quando eu me dou conta que o material bruto que precisa de ser tratado quase como um material de arquivo. Eu me esqueci das condições em que foi filmado, volto a ver três anos depois e coisas que eu não havia percebido antes fazem com que o filme nasce. É essa constatação das condições em que o filme foi feito.
As imagens de arquivo de 68 passaram pelo mesmo processo?
Sim, o meu interesse era responder a determinadas perguntas. Por exemplo, como é que você filma numa democracia? Como é que você filma num regime autoritário, como é que filma num regime totalitário? O que você pode dizer da imagem, de um quadrado, do enquadramento, da lente que você usa, sem sequer saber o contexto, simplesmente olha para a imagem e você pode deduzir coisas a respeito do contexto político em que elas foram feitas. As imagens de Paris foram todas feitas de perto, porque não há medo, não há risco. A polícia pode bater, mas ela não vai te matar. Na Checoslováquia é tudo de longe, escondido por detrás de janelas, porque essas são as imagens produzidas em regimes totalitários e autoritários.
Curioso. Mas há também as imagens de uma intensa alegria na China, captadas pela sua mãe, em que parece querer captar tudo com a câmara num frenesim…
É interessante porque ninguém tinha dito isso antes. Você tem toda a razão, é a câmara que vai para todos os lugares, você quer ver tudo. Exatamente. Nunca tinha pensado nisso.
Só para finalizar, gosto muito como o filme acaba, e acaba com um fado.
O filme nasce por causa do fado.
É? A sério?
Eu ouvi esse fado há quinze anos atrás e ficou-me na cabeça. É preciso fazer um filme que tenha esse fado Não Quero Rosas Vermelhas, da Maria Alice. E com a música do Rodrigo Leão porque eu sempre gostei muito do Madredeus, sempre gostei muito dele e tem um CD que se chama Cinema, que é uma maravilha, decidi procurá-lo, ele foi muito gentil e o filme ganhou o prémio de melhor trilha sonora no Festival de Cinema do Real, onde ganhou o melhor documentário SECAM, a trilha sonora e o prémio das bibliotecas. A trilha sonora me deixou muito feliz.