Dia 3. Os diversos desafios do real.
Largas às Curtas
A programação dos Caminhos do Cinema Português proporcionou aos presentes mais um dia repleto do grande cinema que se vai fazendo em Portugal. Seja em curtas ou em longo formato, em ficção, animação ou documental. Estas são histórias que invocam o passado, intrigam a mente e desafiam a imaginação.
Quem não pode ver a curta Sombra Luminosa, de Francisco Queimadela e Mariana Caló, no IndieLisboa, teve a oportunidade de a conhecer em Coimbra. Trabalho fruto de uma residência e desenvolvimento em conjunto com o Centro Internacional das Artes José de Guimarães, oferece um fascinante exercício de reflexão a partir da combinação de várias peças num contínuo diálogo entre os rituais e a transcendência.
Outro trabalho de passagem prévia do Indie foi a dramatização dos diálogos escritos por Fernando Pessoa, e desenhados por Júlia Buisel, em Quantas Vezes Tem Sonhado Comigo?, em que o diabo interpela uma donzela nas ruas de Lisboa. Ela é Catarina Wallenstein e ele Dinis Gomes, ambos encarregam-se de dar corpo e alma e essas personagens num exércício feliz não isento de alguma sedução.
Vimos ainda a multi-premiada curta Entre Sombras, da dupla Mónica Santos e Alice Guimarães, em que a animação stop motion feita de imagem real nos remete para o ambiente noir do final dos anos 40 em Portugal e para uma saborosa inversão em que o fominino toma as rédeas da ação. Um filme apresentado no Curtas de Vila do Conde, onde recebeu o prémio do público, bem como em Zagreb, viajando depois para Hiroxima, sendo igualmente premiado. Mais recentemente, foi incluído na short list para os César, os prémios do cinema francês, em concurso para a melhor animação (tal como o filme de Eugéne Green, Como Fernando Pessoa Salvou Portugal, igualmente exibido nos Caminhos do Cinema Português).
Passou ainda Agouro, a belíssima animação de David Doutel e Vasco Sá, numa produção de Bando à Parte e com a colaboração do estúdio Le Fresnoy, também devidamente apreciada no Curtas e no Motel X. A animação vibrante de narrativa intensa e invernosa rima com a história de dois primos iremediavelmente ligados a um quotidiano rural cruel e glacial.
Por fim, Russa, o registo de João Salaviza e Ricardo Alves Jr., apresentado ainda este ano no Berlinale Shorts, marca o regresso ao bairro do Aleixo, no Porto, de uma mulher, Russa, depois de cumprir a sua pena de prisão. Uma realidade que se alterou, mas na qual Russa terá de reaprender a viver.
E as Longas de mestres
Para além de Caminhos Magnétykos, Edgar Pêra trouxe também ao CCP um objeto difícil de classificar, mas não que isso belisque a sua vitalidade e urgência. Trata-se de O Homem Pikante – Diálogos Kom Pimenta, um filme que se foi fazendo ao longo de três décadas e que mostra a amizade e partilha de desafio intelectual do realizador com o poeta e performer Alberto Pimenta. Oxalá este filme possa diminuir o número daqueles que não conhecem a verve deste homem que disse um dia que “o lema do filho-da-puta é que nada se crie, que nada se transforme”.
Ora, algo que aqui passa por um crivo de desafio e criação permanente, como a poesia redonda, em jeito de vortéx, que nos remete ao iníco, embora já como pessoas transformadas por ela. É essa a forma de Pimenta estar na vida, seja a fechar-se numa jaula de felinos, como fez no Jardim Zoológico, no final dos anos 70, ou a a levar-nos ao exerício de nos questionarmos “o que sou eu?” em vez de “quem su eu?”.
Edgar Pêra vai cozinhando estes diferentes tempos – também o veremos equanto jovem – sobepondo imagens, camadas de tempo, e conceitos, legendas na tela e pedaços de realidade que nos levam a repensar a nossa posição na sociedade atual. Um pouco como os ensnamento de Adorno. Razão pela qual, nos atrevemos a brincar com o anagrama de Edgar e perceber como não fica longe de… Godard.
Rui Simões mostrou-nos ainda como se passavam as coisas n’A Casa, ou seja, a Casa dos Estudante sdos Império, um espaço nascido com o Estado Novo para reunir os estudantes das colónias, mas também para melhor os controlar. Ainda assim, foi aí que surgiram os grandes líderes partidários desse período dos movimentos de descolonização, eles que haveriam de fugir nas vésperas da Guerra Colonial, em 1961.
Rui Simões faz uma ponte muito saudável entre o registo documental e os segmentos em que dramatiza aquilo que não tem como mostrar, criando assim um fascinante documento, abrilhantado até pela contribuição de Adriano Moreira, Ministro do Ultramar no governo de Salazar, e que haverá de lamentar “aquilo que deixou de se fazer” por aquele povo que acabou por se divorciar da metrópole.
Coimbra rendeu-se ainda à visão que Leonor Teles e ao retrato de uma família vila franquense nas vésperas do casamento de uma das filhas de um pescador. Estreia-se assim no formato de longa metragem, depois da consagração nas curtas com Balada de um Batráquio, premiado em Berlim com o Urso de Ouro. E logo com um registo profundo e tocante de um quotidiano doméstico de gente comum que aprendemos a gostar. Ainda que o grande vetor nunca deixe de ser o ‘pater’ Albertino Lobo, que pela sua simplicidade se torna numa personagem maior. O filme que foi exibido no DocLisboa, e no Cinéma du Reel, acaba por ser igualmente descoberto e aplaudido em Coimbra.