25 x Buñuel
Vivemos sob o domínio do cinema provocador de Buñuel. Lisboa primeiro e depois o Porto recebem a preciosíssima retrospetiva de 25xBuñuel. A primeira parte deste novo ciclo organizado pela Leopardo Filmes começou no dia 11 em Lisboa (Media Espaço Nimas) e no Porto (Medeia Teatro Municipal Campo Alegre), desenrolando-se até 5 de agosto; a segunda parte deverá ser exibida em novembro.
Regressamos a Buñuel depois da retrospetiva integral da obra de Buñuel, realizada em 1982, no famoso ciclo na Fundação Calouste Gulbenkian e na Cinemateca Portuguesa, e onde foram pela primeira vez mostrados muitos filmes até aí proibidos ou simplesmente inéditos. Buñuel que não chegou a vir (ele morreria um ano depois) enviou uma carta datilografada a Luis de Pina, na altura à frente da Cinemateca Portuguesa (de resto publicada no catálogo), lamentando não poder concretizar esse “prazer inestimável” por motivos de idade, salientando “ami edad, 82 años que me impide hacer desde hace tres años, toda classe de viajes”, bem como “mi vista y mi oido son muy deficientes lo qual me impide el poder alternar correctamente con nuevos conocimientos sociales que esa ocasion serian inevitables.”
A possibilidade de rever ou descobrir este imenso espólito deveria ser motivo do maior entusiasmo do público cinéfilo ou simplesmente de quem gosta de cinema. Celebramos então esta alternativa muito digna ao cinema mais comercial imposto durante o período estival.
Até pela certeza de que o cinema singular de Buñuel, capaz de fazer pontes entre sistemas de produção bem diversos, mantendo sempre perto os elementos e o simbolismo que melhor o define. Por isso mesmo dizemos que o cinema de Buñuel vale bem mais do que qualquer blockbuster.
Nesta primeira parte, o ciclo irá percorrer o período surrealista (Un Chien Andalou e L’Âge D’Or), o documentarismo realista e violento, embora de profundo vínculo social, de Las Hurdes (mais tarde completado por Los Olvidados, já no México e 1950), bem como a extensa carreira mexicana até esse marco que é Viridiana, já em 1960. Uma pesquisa que nos permitiu voltar a manusear o catálogo da retrospetiva de 1982, bem como o livro biográfico O Meu Último Suspiro, que Buñuel escreveu com a ajuda de Jean-Claude Carrière, seu argumentista de longa data, e editado precisamente em 1982.
Por aqui se traça a ligação entre o cinema e a vida de Luis Buñuel. Em particular desde as suas idas a França e o envolvimento com o movimento surrealista durante a segunda metade dos anos 20, o seu convivio com Dali e Lorca, bem como o projeto para o seu primeiro filme, baseado em dois sonhos – “uma nuvem afilada que cortava a Lua e uma lâmina de barba que fendia um olho”, ao que se juntara um sonho de Dali, com uma mão cheia de formigas. Daí a pergunta: “E se fizessemos um filme, partindo disto?” Assim germinava Un Chien Andalou/Um Cão Andaluz (1929), com um argumento filmado em menos de uma semana e tornado possível graças ao dinheiro da mãe de Buñuel. A permissa fiel ao surrealismo baseava-se numa regra aceite de comum acordo: “não aceitar nenhuma ideia ou imagem que pudesse dar origem a uma explicação racional.” A verdade é que vê-lo ainda hoje percebemos que conserva a sua modernidade e arrojo.
Apesar de Un Chien Andalou ter motivado uma “estreia triunfal”, Buñuel desejava prosseguir a senda surrealista no cinema, apesar de não equacionar pedir mais dinheiro à mãe. L’Âge D’Or/A Idade de Ouro (1930) é tornado possível graças a uma encomenda com total liberdade de criação, permitindo a Buñuel dar corpo a ideias precisas. Fazem parte da história do cinema a cena em que uma carroça de estrume com camponeses atravessa uma sala de ambiente mundano e burguês, bem como o episódio de um pai que mata o próprio filho com um tiro de caçadeira pela brincadeira de ter feito cair a cinza do seu cigarro, mas o que deixa indiferentes os convivas; só se insurgem quando alguém dará uma bofetada a uma dama de companhia. Numa outra cena, celebra-se o desejo incontrolável de uma mulher (a atriz Lya Lys) que beija com volípia os dedos do pé de uma estátua grega…
Ao surrealismo de L’Âge D’or, pateado por muitos e cuja projeção esteve proibida durante décadas em França, como nos EUA, responderá Buñuel com a brutalidade feroz e miserável, mas profundamente realista do paupérrimo povo de Las Hurdes – Terra Sem Pão (1932), incluindo a cena censurada em que durante as festividades em que se arrancam os pescoços de galos vivos pendurados pelas patas, numa celebração festiva amplamente regada com vinho. Durante menos de 30 minutos, recebemos um profundo documento etnográfico que nos aproxima deste povo ‘sem pão’, isolado e doente, fechado entre serras, que Buñuel acabará por associar um surpreendente apelo antifascista nos créditos finais ainda antes da Guerra Civil espanhola, que aliás Buñuel acabaria por experienciar.
Tudo começou com El, um filme já da fase mexicana, mas que provocou enorme polémica em Cannes, onde foi exibido em competição. É aí que o cineasta espanhol se serve dos clichés do modo de produção comercial apreendidos no México (embora em trabalho não creditado), vertidos agora num projeto coerente em que exulta vários dos temas favoritos deste cineasta subversivo, como o ataque à religião, o fascínio recorrente que as suas personagens têm pelos pés, ou até mesmo o amor louco e ao vírus fatal do ciúme, engendrados neste melodrama assolapado de 1953.
Curioso será percorrer toda essa fase mexicana, antes ainda de Buñuel receber o seu estatuto de ‘autor’, em grande parte pela intervenção de André Bazin, na altura à frente dos Cahiers do Cinéma, e responsável pela sua inclusão na ‘política dos autores’, e sublinhado pela entrevista em parceria com Jacques Doniol-Valcroze, de 1954, num período em que apenas se conhecia na Europa os filmes do seu início de carreira, ou seja, com Un Chien Andalou, L´Âge d’Or e Las Hurdes. Seria o caso de Los Olvidados/Os Esquecidos (1950) (no dia 2 e 3 de agosto, no Nimas, e 28 e 29 julho, no Campo Alegre), ou Susana (1951) (4 e 5 de agosto, Nimas, e 30 e 31 julho, Campo Alegre) ou a consagração com Nazarin (1959) (26 e 27 julho, Nimas, e 21 e 21 julho, Campo Alegre) e, sobretudo, Viridiana (1961) (1, 6 e 7 agosto, Nimas, e 26 e 27 julho Campo Alegre).