Quarta-feira, Dezembro 11, 2024
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1917 não é o soldado milhões de Sam Mendes

Percebe-se que 1917 de Sam Mendes tem muita vontade em ser um épico de guerra, provavelmente na linha das maiores referências do género, embora esse desejo resvale sempre na vontade maior em ser um prodígio técnico. A ideia do efeito one shot não é inovadora, mas aqui acaba por queimar em redor o filme e não servi-lo, na linha da genial solução de Alfred Hitchcock em A Corda, que continuará a ser a referência inabalável. Em todo o caso isso não abala as legítimas aspirações de 1917 em ser um dos mais fortes candidatos aos Óscares com uma dezena de referências.

Sabemos também que na génese do projeto 1917 está a evocação ficcionada do avô Mendes, um soldado britânico de ascendência portuguesa que serviu na Grande Guerra como correio de guerra, aqui personificado por um soldado incumbido de levar uma mensagem importante às tropas do outro lado da ‘terra de ninguém’ para tentar impedir uma ofensiva suicida. Pena é que tal ideia resulte melhor no papel do que nas duas horas da narrativa deste filme geométrico que muito bem poderia ser um competente exemplo de videojogo de ação na terceira pessoa, na linha da saga Call of Duty, de resto sublinhado da melhor forma pelo rigoroso trabalho da fotografia de Roger Deakins.

O que falta então a 1917? Porque na verdade (parece que) temos lá tudo: as trincheiras, o espaço e o tempo de uma guerra inteira, os cenários hiper-realistas, a missão, as escassas personagens com quem os dois soldados incumbidos da missão de cruzam, numa proximidade não estranha a Dante, já depois do ‘Inferno’, ou seja, no ‘Purgatório’. Faltará seguramente o ‘pathos’ desse conflito reduzido à deriva de um one man show (sobretudo depois de perder o seu colega de missão), desamparado de qualquer sentimento que a ele nos ligue, apenas elidido por aquilo que não vemos (refletido de forma elíptica pelos despojos de guerra).

É aqui até que apetece recordar o muito digno O Soldado Milhões de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa, película que acaba por se prestar a uma inevitável comparação e da qual não sai beliscada. Até com a singular proximidade: 1917 inicia e 6 de abril de 1917, ao passo que O Soldado Milhões principia a 9 de abril de 1918, na Batalha de la Lys. Por falar em comparações, as que 1917 quis evitar, torna-se inevitável recordar O Resgate do Soldado Ryan, de Spielberg, mas também a gritante memória do incontornável The Big Parade, de King Vidor, ainda no mudo de 1925, com quem partilha o mesmo DNA.

Percebe-se que Sam Mendes quis fazer com 1917 o que Iñarritu concretizou em The Revenant: O Renascido, há cinco anos atrás (também ele nomeado em dez categorias) e consagrado com o Óscar de Melhor Filme. 1917 é o brutal filme de ação que somos convidados a imaginar. Pena é que não conseguir partilhar dessa emoção. Nem mesmo quando Benedict Cumberbatch profere a decisiva declaração (e que nos remete de novo para o universo shoot’em’up): there is only one way this war ends: last man standing. Now, fuck off!

 

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