Family Romance, LLC é uma ficção que se parece com documentário, apesar de mostrar coisas que procuram reproduzir a realidade. Algo que no conjunto da obra de Werner Herzog, tão marcada pelo realismo, pode causar alguma estranheza. No fundo, sublinha algumas taras da sociedade japonesa tão maquilhada em que já não se sabe bem o que é real ou não. Mais importante será talvez referir que se trata de um regresso ao cinema de guerrilha, tão no espírito da sua Rogue Film School, a tal escola em que se procura fazer um cinema novo, pela recusa dos métodos tradicionais, bem como por um regresso ao estilo de Aguirre, como confirma o cineasta germânico na nossa entrevista em Cannes.
Fiel ao seu estilo, Herzog garantiu-nos que apenas filmou seis dias no Japão durante uma paragem depois um périplo por Hong Kong, Xangai e Pequim, onde teve uma retrospetiva, regressando depois para completar o filme com mais 8 dias. Ou seja, Family Romance teve ao todo 14 dias de rodagem. E 300 minutos de rodagem.
É assim este filme sobre uma agência de capaz de providenciar as necessidades emocionais mais apetecidas para quem vive numa solidão existencial. Seja fazer-se passar por um pai que nunca viu a filha, ou um indivíduo que substitui o pai da noiva que a leva ao casamento substituindo o verdadeiro, um alcoólico e pouco recomendável; ou talvez um empregado de caminhos de ferro capaz de assumir a culpa num pequeno atraso de 20 segundo na partida do comboio supersónico. Vá, a mulher que deseja ser famosa e aluga uma equipa de paparazzi para a fotografar na rua. Como se vê, as hipóteses são intermináveis.
Aí está Family Romance, LLC depois de ser apresentado em estreia mundial no último festival de Cannes, onde passou na seção special screenings, e após a exibição em Portugal no DocLisboa. Apesar de ser uma ficção, as emoções são verdadeiras, como refere Werner. Mas tão verdadeiras como o hate mail ou o bullying que circula através da net. Ele que garante que os diversos sites e páginas que existem com o nome dele são todos falsos. Não tenho página de facebook nem nada nas redes sociais, garantiu-nos. Nem sequer uso telemóvel. Mas lê muito. Aliás, refere que quem não lê nunca será um bom cineasta. Mesmo que assuma que neste filme não teve tempo para ler, pois estava demasiado empenhado em decifrar o labirinto das linhas do metropolitano de Tóquio. Quanto ao telemóvel, assume apenas que é capaz de ver alguns ‘vídeos de gatinhos’ no youtube que alguém lhe mostra quando é necessário superar algum momento mais depressivo.
(em baixo um novo excerto da nossa entrevista, em que WH assume a proximidade do estilo ‘rogue cinema’ de Family Romance num regresso a Aguirre, a Cólera de Deus)
Lembro-me de falar consigo há alguns anos, creio que foi em Veneza, em que estava a desenvolver o seu projeto guerilla.
Fala da Rogue Film Scholl?
Sim, é isso. Tem crescido?
A RFS tem o seu background. Há uma avalanche de pessoas que começam a fazer cinema ou profissionais que querem aprender comigo. Tento dar-lhes uma resposta mais sistemática com esta escola, que é o oposto do que vemos atualmente em escolas de cinema. Algo que me dececiona. Mas dou também uma resposta sistemática através de uma companhia de internet que se chama Masterclass. Eles publicam coisas como ‘Fazer Cinema com Werner Herzog’ ou ‘Jogar Ténis com Serena Williams’ ou ‘Representar com Dustin Hoffman’, etc. Publicaram uma masterclass online que foi muito bem recebida. E eu publiquei também um livro sobre o meu trabalho que se chama Guide for the Perplexed, um título fantástico que admito ter surripiado ao filósofo judeu Maimonides.
Acha que chegaremos ao ponto em que começamos a questionar a nossa própria realidade?
Sim, já não temos bem a noção do que é realidade, mentira ou fake news. Tudo isto se tornou muito intenso. No Japão é apenas a vanguarda, porque é algo que vai chegar até nós em breve. A pergunta que fica é como serão as nossas relações pessoais, até que ponto seguirão um guião, até que ponto serão estilizadas. No fundo, este é um background do filme?
Até que ponto criou esse background? É que parece que há esse lado artificial mas também diz muito sobre nossa necessidade de comunicar.
Na verdade, foi tudo muito linear. Mas temos de ter cuidado porque se trata de uma ficção. Todos os diálogos foram escritos, as cenas são organizadas por mim. É uma realidade que apenas aparece na ficção. Se é que se pode falar de todo em realidade. Quando encaramos o cinema de hoje percebemos fórmulas, nada é completamente novo. Mesmo os filmes de fantasia, nada surpreende se de repente aparecer um dragão. Uma coisa é certa, nunca viu nada no cinema como em Family Romance. No entanto, é quase natural aquilo que mostro.
É verdade que se trata de um projeto sugerido por um dos seus alunos?
Um dos Rogues, sim.
Pergunto-me até que ponto é exigente na seleção daqueles que irão fazer parte da escola. Pergunto isto porque li no seu website que exige que sejam pessoas com uma visão atrevida.
Não existe um guideline, mas aquilo que me chega com grande veemência e que me deixa sem alternativa é algo que me interessa.
Como professor, há algo que aprenda também com os seus alunos?
Nem por isso, já não aprendo muito. Claro que a cada filme que faço tento sempre aprender algo e melhorar. Explorar o desconhecido. Mas já não procuro aprender muito. E na verdade também não ensino. Claro que na Rogue Film Scholl é diferente, mas ensino apenas duas coisas: como abrir um cofre com um pequeno instrumento e como forjar um documento. Por exemplo, uma autorização de rodagem. Quando trabalhamos no meio de uma ditadura militar, por exemplo, fiz alguns filmes como em Mianmar, muito antes das eleições, e fiz uma autorização muito perfeita em birmanês, que nem as autoridades militares desconfiaram.
Desenvolveu entretanto outros projetos?
Nesse momento, estava a fazer outros dois projetos. Portanto, no último ano fiz três filmes. E fiz uma masterclass na selva Amazónia, do lado do Peru, com 48 cineastas. Para além disso participei numa das sequelas de Star Wars The Mandelorian (2019). Estas são as pequenas coisas que fiz pelo meio. É evidente que este projeto teria de ser feito de imediato. Havia um grande interesse em Hollywood.
A Amblin…
Sim, a Amblin e tanto quanto sei, o Ryan Gossling queria comprar os direitos da história. Percebi que era algo que estava a criar alguma agitação. Mas antes de escreverem o longo contrato, eu já estava filmar…
Há algo pessoas nesta história que o interessou?
Nem por isso. É apenas algo tão óbvio que me fez pegar nisto de imediato. Tinha tanto a ver comigo, como Fitzcarraldo (1982). Não, não estou a pensar construir uma ópera na Amazónia….
Como foi o desenrolar desta produção?
Fiz o filme numa escala quando vinha da China, onde fiz uma retrospetiva, em Hong Kong Xangai e Pequim. No regresso a Los Angeles fiz uma escala no Japão e filmei seis dias. Depois voltei em Agosto em que filmei mais oito dias. No total foram 14 dias. E o total que filmei foram exatamente 300 minutos. Não são 300 horas, ouviu bem são 300 minutos.
Diria que o seu estilo de filmar será muito diferente agora de quando fez Aguirre, a Cólera de Deus (1972)?
Não, aliás este filme é um regresso a Aguirre e a esse tipo de cinema. Quase sem equipa. Claro que Aguirre precisava de mais pois estava constantemente on route com esses conquistadores espanhóis com o guarda roupa, os canhões e equipamento. Portanto, tinha uma equipa de oito pessoas. É então um regresso a isso. Estrava farto de empréstimos, seguros, autorizações. Portanto, quis mesmo regressar ao tempo de Aguirre e Fata Morgana (1971).
Até que ponto acredita na sorte do realizador e naquilo que não pode prever?
Depende daquilo que estiver a fazer. Mesmo quando sigo um guião, estou bem preparado mesmo num filme complexo, deixo sempre a janela aberta para o incrível e o louco, para que possa invadir. Como na iguana de Polícia Sem Lei (2009). Algo que só ele vê, para além de nos público. No fundo, é uma conspiração entre o Polícia Sem Lei e nós espetadores. As portas estão sempre abertas.
Perguntei isso, porque quando está a filmar num barco terá mesmo de confiar no improviso e no que pode suceder…
Sim, os barcos podem pregar algumas partidas, sobretudo quando estamos na selva amazónia, em águas baixas em que podemos ter um banco de areia. Em Aguirre vivíamos em jangadas e não podíamos saber o que viria pela corrente. Podia ser uma queda de água ou rápidos, uma aldeia que fosse hostil ao que estávamos a fazer. Gosto dessa atitude básica e da alegria imensa de regressar a esse tipo de cinema.
E o que dizer dos funerais improvisados em Family Buisness?
Foi tudo escrito no guião por mim. Mas existe uma wild trend nos mais jovens que desejam experimentar a sensação de um funeral sem estar morto, portanto essa ideia não estamos muito longe dessa ideia. Ou coisas que são muito estranhas a nós, como um funcionário dos caminho de ferro que deixa partir um comboio 20 segundos mais cedo e deixa crianças separadas de pais ainda na plataforma. Ouvi um episódio ocorrido há um ano atras em que esse comboio bala publicou páginas de anúncios a pedir desculpa por ter feito partir um comboio cedo demais. Então desenvolvi esta história em que a personagem assume as culpas por outro, mesmo que o verdadeiro culpado esteja ao lado.
Mencionou ter participado num Star Wars e também em Jack Reach, em que está muito bem. Como é, costuma ver este tipo de filmes de Hollywood?
Devo dizer que gosto de fazer estes papéis pequenos, como em Jack Reach ou no filme do Harmony Korine, onde posso ser um pai disfuncional e hostil. Quando li o guião de Mandalorian percebi que poderia ser divertido. Quanto ao Family Romance foi tudo pago do meu bolso. Portanto, irei tentar recuperar tudo. Faço estas coisas para ganhar algum dinheiro e para poder fazer aquilo que gosto.
Interessa-lhe esse tipo de filmes de Hollywood?
Na verdade, não. Não vi nenhum dos blockbusters. Não vi o Titanic, não vi o Avatar. Vi um trailer do Avatar. Parecia interessante.