Terça-feira, Dezembro 10, 2024
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Vieirarpad: O contracampo do fogo

Vieirarpad vê finalmente a luz das salas de cinema (coisa que merece cada vez mais celebração nos dias que passam, bem como, sobretudo, àqueles que ali vão comprovar). Aliás, valerá a pena dizer que este foi um filme descoberto no IndieLisboa do ano passado, portanto há mais de um ano. Quase a pisar a estreia do ‘outro’ filme de Joao Mário Grilo, Campo de Sangue, com argumento de Inês Barreiros, na adaptação da obra de Dulce Maria Cardoso, com Alba Baptista e Carloto Cotta, cuja estreia está marcada para o próximo dia 23.

Antes de mais, valerá a pena dizer que Vieirarpad parece ser um daqueles filmes com vida própria. Em que antes de o ser já o era. Pelo menos, segundo o realizador João Mário Grilo, ao defender que “essa criatura” (chamada Vieirarpad) já fora gerada pelo casal de artistas, a portuguesa Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) e o húngaro Arpad Szenes (1897-1985), remetendo apenas para si o papel de “intermediário” da mensagem.

Talvez essa designação diga pouco. Sobretudo porque este belíssimo documentário acrescenta algo muito particular a essa obra. É o tal “corpo etéreo”, a tal visão fantasmática que se ergue da sepultura, partilhada pelo casal e pela mãe da pintora, Maria da Graça, no arrepiante plano inicial, e nos acompanha ao longo da visão romântica dessa ‘mulher chamada Bicho’, como José Álvaro de Morais intitulou o seu documentário de 1978, aqui a servir de contraponto ou âncora.

Se calhar, Vieirarpad será até um prolongamento de ressonâncias de Ma Femme chamada Bicho, porque apesar de Grilo se centrar na magnífica vida e obra do casal, procura também o seu espaço próprio – o espaço do cinema – como o próprio diz, “aquilo que se põe à frente da câmara”. E essa marca que vemos diante da câmara acontece já perto do final, numa sequência que, do nosso ponto de vista, muda o curso do filme.

O momento é fundamental (até mesmo insólito), ao longo de uma conversa amena, ternurenta, aparentemente ocasional, na sua casa de campo, em Yèvre-Le-Châtel, na região do Loire, entre Arpad Szenes e Viera da Silva, expostos à câmara de Morais incluída, de resto, no documento de 1976 (à memória de quem, de resto, o filme é dedicado, bem como à de António Escudeiro). Nela, Grilo ilustra esse momento de intimidade, ilustrado por pequenos detalhes insignificantes – embora um deles, nada insignificante, quando Vieira se escusa, na sua voz sumida e doce, ao dizer que “pintar para a câmara não é autêntico”. A sequência terminará junto à lareira, com Arpad a dizer “está-se bem, aqui ao pé do fogo”. A cena será repetia, desta vez com a cena de Morais, com Grilo a assumir a replica e a terminar no mesmo plano do fogo.

É aí percebemos que Grilo filmou foi o contracampo da cena de Morais (mas também o ponto de vista de Arpad). Um verdadeiro plano de fogo, como lhe chamaria Straub, em que algo de muito relevante se tem de, forçosamente, passar para que haja cinema. E não só o acento de rigor da artista plástica portuguesa relativamente à colocação da câmara. Como que a segredar a JMG que essas imagens terão de se ir buscar a outro lado.

É esse lado revelador – o tal contracampo – que parece dominar Vieirarpad. Talvez até prenunciado no título que justifica o facto deste par de artistas parecer ter pensado no prolongamento de uma vida para além da arte. “Do que queres que eu fale? Da arte? do amor?”, questiona Arpad, de cigarrinho no canto do lábio, o homem da câmara de filmar. Como Grilo parece fazer com Morais. Fixando a narrativa na extensa troca de correspondência, fruto de se tratarem de dois artistas famosos, e das exigências de exposições que os levavam a viajar.

São as cartas, como diria Pessoa, ridículas, ternurentas, feitas de beijinhos (intermináveis pusi-pusi, pusi-pusi), desenhos e outros mimos atirados para o papel via Paris, Londres, Budapeste, Lisboa ou Nova Iorque (ou as de Sintra enviadas pela mãe), que tomam esse sentido fantasmático (que ganha vida na voz de Luís Lucas e Suzana Borges). Nesse sentido, Vieirarpad será até mais do que um filme biográfico, e talvez mais um filme sobre o amor pela arte.

Em vez do filme sobre Arte, temos então o lado privado da arte, em que o cinema se intromete para auscultar o seu “tempo e movimento”. “Eles prepararam muito bem o arquivo da vida deles”, referiu JMG, na apresentação do filme na Culturgest, em 2021. “Eu só tive de o filmar.”, acrescentando mesmo que tentou “fazer o filme que a Vieira e o Arpad fariam se fossem cineastas”. O passeio, que JMG esclarece ter sido feito já no final do documentário, em que a equipa montou a câmara para essa maravilhosa sequência coreográfica em que o casal passeia no exterior da sua casa, em França, fora consentido (ou preparado) pelo casal que assim transporta a câmara a seu lado.

Nesse sentido, as três partes em que se divide Vieirarpad não representam um filme sobre a pintura, mas sobre o que está ao lado ou atrás dela, o tal amor que faz com que a arte apareça. Não é sobre as linhas, precisas, milimétricas de Vieira, sobre o trabalho árduo, focado, do atelier e o arrumo particular da sua composição, como que a evocar a forma geográfica do azulejo lusitano ou os telhados de Lisboa, mas sobre as linhas das cartas que vão sendo escritas e o emaranhado nos autorretratos de ambos, como verdadeiras personagens de Vieirarpad.

Em particular, todo o auto-exílio no Rio de Janeiro – a justificar a co-produção com a produtora Gullane, e a assistência de realização de Francisco Barbosa, que se associa à regular equipa local, com a produção de Fernando Centeio, o co-argumento de Inês Barreiros, a montagem de Luca Alverdi e a imagem de João Ribeiro.

Se é verdade que Arpad era o terceiro olho de Vieira da Silva, neste caso, o olho da câmara de João Mário Grilo será a testemunha do cinema sonhado por ambos.

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