Oito filmes de uma só vez, inevitavelmente, um conjunto de obras marcantes (primas mesmo!) de Rainer Werner Fassbinder (1954-82), num luxuoso e vasto programa da Leopardo Filmes, a partir já do dia 6. Por aqui se celebra o cinema maldito do germânico genial e incansável que viveu depressa demais – morreu há 40 anos, cumpridos a 10 de Junho passado – e filmou na justa medida. Bastaram-lhe 13 anos para fazer (e tão bem) o que muitos demoram uma vida inteira. Um cinema avassalador que abalou as estruturas burguesas da Alemanha e até ambos os lados do espectro político. O convite fica feito para ‘viver’ no cinema Nimas (um pouco por todo o país) o seu cinema que ziguezagueou em diversos estilos numa febril exploração de sentimentos: desde o funesto passado do nazismo ao outro lado do ‘milagre económico alemão’ entre o final da década de 60 e ao longo dos anos 70. No fundo, a wave germânica que prolongava com identidade própria a nouvelle vague francesa.
Quando encaramos este generoso acervo de obras de RVF, oferecidas pela Medeia Filmes em cópias digitais restauradas, percebe-se que esta (re)descoberta do novo cinema alemão vai muito além de obras-primas, como As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Effie Briest – Amor e Preconceito ou O Medo Come a Alma. Até porque importa compreender de onde vem irreverência inconformada de Cuidado com Aquela Puta Sagrada, a catarse e sarcasmo – do inédito em Portugal – A Mamã Küsters Vai para o Céu, o desamor de O Mercador das Quatro Estações, a misantropia de Roleta Chinesa até culminar com uma alegoria da perda da alma alemã no tremendo sucesso de O Casamento de Maria Braun.
Paralelamente, afirma-se a consistência de uma obra tão vasta como fértil e afirma-se a constelação ‘mitológica’ da sua família de actores e técnicos, preparados para revelar os tiques, requintes, recalcamentos e revoltas de personagens pequeno-burguesas em prodigiosos jogos de espelhos desenhados quase sempre pela fotografia de Michael Ballhaus.
Um fascinante mergulho na obra fascinante de Rainer Werner que, no nosso caso, contou com o precioso complemento informativo do livro do dinamarquês Christian Braad Thomsen, intitulado precisamente ‘O Amor é Mais Frio que a Morte’, cuja tradução portuguesa acabou por servir de catálogo para o ciclo que a Cinemateca Portuguesa dedicou co cineasta maldito germânico em 2007.
O seu cinema sem compromissos deixou diversos seguidores, como o espanhol Pedro Almodóvar, mas também o francês François Ozon que recentemente François Ozon tentou uma aproximação decalcada, ou mesmo o americano Todd Haynes. Ainda que a própria fotografia desenhada e assinada por Michael Ballhaus acabaria por, inevitavelmente, influenciar também o cinema e a longa colaboração com Martin Scorsese.
Rainer Werner Fassbinder nasceu e viveu talvez no período mais marcante da recente história alemã, nos escombros da rendição nazi acabando por desaparecer numa combinação fatal de químicos, álcool e cocaína sete anos antes da queda do muro de Berlim. Aliás, em boa medida, o produto de ‘desnazificação’ da Alemanha que viveu, bem como o ‘milagre económico’ de Konrad Adenauer (1876-1963) que assistiu, acabam por ser o cenário de grande parte dos seus filmes.
Apesar de nunca ter frequentado uma escola de cinema, bastaram a Rainer apenas 13 anos para realizar nada menos que 37 longas-metragens (uma por cada ano que viveu), 3 curtas-metragens, duas séries de televisão (20 episódios), além de quatro trabalhos em vídeo e quatro produções de rádio. Além disso, Rainer foi ainda actor em muitos dos seus filmes, bem como de outros colegas e trabalhou ainda em teatro, escrevendo 18 peças e encenando 23. Ou seja, uma completa adição ao seu cinema, a par do abuso de álcool e de drogas, acabando por manchar a sua reputação e popularidade na Alemanha.
Numa primeira fase, durante os efervescentes anos 70, afirma um cinema simplista, de vanguarda, apostado no seu próprio meio da nova vaga alemã, explorando e recriando um cinema onde era acompanhado por Alexander Kluge, Wim Wenders, Werner Herzog, Margarethe von Trotta ou Werner Schroeter, estes dois últimos que veremos em Cuidado com Aquela Puta Sagrada.
Apesar de ser fortemente crítico da indústria clean do cinema americano, também tinha os seus ‘autores’ ‘muito lá de casa’, para usar uma expressão cara a Bénard da Costa. Até porque são autores comuns: Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Raoul Walsh, mas também Douglas Sirk, por exemplo, em grande parte pela habilidade de adornar o eventual ‘happy ending’ de conclusões e conotações mais inquietantes a convidar uma reflexão mais profunda. Isto antes de se interessar mais pelo público e até ousar uma proximidade a certos modelos americanos “tão belos, poderosos e fantásticos como os de Hollywood, ainda que sem serem totalmente optimistas”. Tal como faria por exemplo com O Medo Come a Alma, talvez o seu filme mais próximo de Sirk.
Fassbinder foi incansável na dedicação à sua obra, bem como na proximidade com a sua trupe de actores-colaboradores, integrando uma certa ‘a mitologia íntima do grupo de Fassbinder’, em particular a galeria feminina, que nos irá acompanhar nestes oito filmes programados (mas não só).
Mesmo que actores como Ulli Lommel (1944-2017), Wolfgang Schenck ou Gottfried John (1942-2014) foram tenham sido presenças habituais nos filmes de Fassbinder, será o elementos feminino a deixar a sua marca mais vincada. Algo que poderemos verificar nesta mostra. Sobretudo estaremos atentos à presença cativante de Hanna Schygulla, imperial em cada uma das suas prestações. Bem como a genial Margit Carstensen, debutada para o cinema com Fassbinder, como a imperial ‘Petra’, mas que teremos ocasião de apreciar o seu sorriso sibilino em Mama Küsters Vai Para o Céu, O Medo Come a Alma e ainda Roleta Chinesa. Obrigatória referência ainda a Ingrid Caven, casada durante dois anos com Fassbinder; ou a candura de Brigitte Mira (1910-2005) que nos comove, igualmente em O Medo Come a Alma e Mamã Küsters Vai Para o Céu, seguramente o contraponto de Irm Hermann (1942-2020) talvez a actriz que melhor espelhou o lado masoquista e sádico do cineasta e presença quase obrigatória em todo o seu cinema. Para a história (pelo menos deste conjunto de filmes) fique a essência multifacetada do ser feminino, mas que nunca aceitou o cânone feminista da sua época.