Por estes dias, quem tem estado em Berlim percebeu que o frio já não é o que era, graças ao aquecimento global. Mas também, para quem tem seguido os filmes na competição oficial, terá por certo ficado com a sensação de que não chegaram ainda os candidatos aos principais prémios. Façamos então um pequeno apanhado do que já pudemos ver. E tirem-se as conclusões. Terá sido essa esse o resultado das janelas abertas da programação a uma selecção muito ecléctica, como prenunciou o director artístico Carlo Chatrian no texto da brochura do festival. Vamos por partes.
A excepção será o sensual alemão Someday We’ll Tel Each Other Everything, de Emily Atef, a cineaste alemã, franco iraniana, cujo filme Plus que Jamais, passou o ano passado em Cannes (Un Certain Regard). Mas já tinha deixado as melhores impressões com 3 Days in Quiberon, em 2018, dando o prémio de interpretação a Maria Bauman, no papel de uma Romy Schneider no derradeiro período da sua vida. A introdução faz sentido para a sua extrema habilidade para descrever situações emocionais em que nada surge com uma possibilidade de cliché.
É numa Alemanha acabada de se reunificar que uma família vê chegar um filho pródigo, mas em que a filha Maria (a espantosa e promissora Marlene Burrow) leva ainda muito a sério o mundo romanesco que conhece dos livros que devora. Uma hipótese de um romance cálido (e proibido) acentua ainda esse desejo do inacabado. É neste clima de mudança e incerteza, mas. Que só cativa pela simplicidade, que nasce esta proposta singela, pouco calhada para o habitual registo do cinema alemão. Não admirava que tivesse um prémio.
Estas foram as boas notícias, porque os outros quatro filmes que vimos ficam bastante abaixo do desejável. Seja a dimensão épica e alegórica de The Survival of Kindness, do australiano Rold de Heer, ao encanar uma liturgia sobre o racismo, embora com uma placidez de figuras de cera que mais parece saída de um museu. É nesse registo que a odisseia da blackwoman (Mwajemi Hussein) vai perdendo parte do sofrimento ontológico inicial. Há também a consistência formal da produção chinesa The Shadowless Tower do experiente Zhang Lu colocando um crítico gastronómico divorciado na linha de mira de uma jovem fotógrafa. Sente-se a força da indústria do cinema chinês, mesmo que sem desejo de inovação estética e metafórica, como a sombra do Pagode Branco no centro de Pequim, marcando o ponto de intersecção entre o passado e o futuro. De inovação falará Blackberry, sobre o smartfone que vingou antes da chegada do iPhone. Algo que alimenta a efervescência do canadiano Matt Johnsson, mesmo que o título já nos tenha dito (quase) tudo. É um pouco o que sucede também com Manodrome, do sul-africano John Tengrove, em mais uma enésima variante de um filme sobre os males americanos e a sua constante necessidade de auto-ajuda. O taciturno Jesse Eisenberg personifica os traumas da masculininade no papel de um uberista à beira de um ataque de nervos. E nas vésperas de ser pai. Claro que a solução de seguir um culto não poderia dar certo. Por fim, Disco Boy, do italiano Giacomo Abruzzese, encena um perfil de um filme que depressa se esgota num formato, em que se conjugam diversos desejos de fazer, mas sem que as promessas se cumpram. Mas as coisas vão começar a melhorar.