Sábado, Abril 27, 2024
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Great Yarmouth – Provisional Figures: a matança e desespero no outro lado do resort

“Esta cidade cheira a sangue e a merda!” Sejam bem-vindos, a Great Yarmouth, um resort solarengo na costa leste da Inglaterra, conhecido, outrora, por chamar a geração sénior à procura de cocktails e line dancing; a mesma localidade que durante o inverno se esconde para viver do trabalho dos portugueses que asseguram o impulso da forte indústria aviária, frequentemente em condições de desumanidade. Esta força de trabalho é conhecida localmente pelos pork and cheese (a réplica de ‘portuguese’), e por ‘calar e aguentar (muito)’. É precisamente este confronto entre o homem e o animal que Marco Martins explora com pertinência e arrojo neste avassalador Great Yarmouth – Provisional Figures, um filme que nos faz viver uma fortíssima experiência de cinema. Chega agora às nossas salas, depois de em setembro passado, ter partido a loiça toda na sua apresentação em San Sebastian.

Em certa medida, este Provisional Figures – expressão que corresponde ao ‘número provisório’ de emigrantes tugas que ali aparecem em busca da quimera que se revela em pesadelo – mantém até algum diálogo com os limites da crise económica e a pressão de um forte realismo muito evidente em São Jorge, a anterior ficção de Marco Martin que premiou em Veneza (2017) a prestação de Nuno Lopes.

Desta vez, o cineasta escreveu a pensar em Beatriz Batarda. Algo que fez pela primeira vez, à excepção da série Sara, em 2018, retirando dela uma das suas maiores prestações, ao elevá-la a um patamar absolutamente visceral, em que Batarda carrega, literalmente aos ombros, este filme tricotado a partir de várias histórias verídicas. Um protagonismo apenas partilhado com Melo quando este aparece, já no último terço do filme.

Seja como for, este é o filme da Tat, da Tânia, da Beatriz Batarda, da mulher a quem todos os trabalhadores chamam Mãe. À encarregada de gerir o trabalho, mas com um olhar e um corpo que parece saído de uma variante dickensiana do sofrimento tuga. Algo a câmara talentosa de João Ribeiro abraça e recompõe de uma forma tremenda num viscoso ambiente soturno que não desejamos conhecer.

Great Yarmouth – Provisional Figures (Uma Pedra no Sapato)

O filme organiza-se numa tragédia em três actos (divididos pelos derradeiros três meses do ano a anteceder a semana das festas do Natal) alinhavando esta versão portuguesa e mitológica das condições do capitalismo selvagem na Velha Albion. Mesmo quando nos mostra algumas imagens no limite do humanamente sustentável. É o tal cheiro a merda e a sangue, do trimming e do deboning, incómodo que Tat aprendeu a travar passando um pouco de creme Vick debaixo das narinas.

No meio de zombies, ela é uma sobrevivente, que alimenta ainda um sonho de Verão, de fazer um proper reburbishment (uma remodelação a sério) e aumentar o seu generoso pé de meia, ou as suas savings, como ela lhe chama (ampliadas, é certo, com alguma habilidade contabilística) para abrir um negócio de hotéis para reformados à procura de lazer. Um pouco como sucede em Rimini, de Ulrich Seidl, exibido em sala o ano passado, com uma população bem diversa à procura de lazer em época baixa.

Nesta terra onde se vendem quimeras percebe-se que a ligação entre o homem e o animal está mais perto do que supomos. Algo dado pelo resto de humanidade do bird watcher Bob e da curiosa inversão que faz da teoria de Darwin.

Sim, este filme falado em português, embora maioritariamente em inglês, embora o teor arrasador da avaliação da condição humana esteja além da língua e de todos os ‘números provisórios’. Ou seja, aquilo que fica depois do sofrimento, do sangue e da lavagem. Ou seja, os restos. Sejam animais ou humanos.

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