Quinta-feira, Maio 2, 2024
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Filhos de Ramsés: guiados pelo olhar de demónios e feiticeiros

“O inferno está vazio! Todos os demónios estão aqui!” A frase maldita, proferida entre pai e filho, vem impregnada de um misticismo que desafia a razão e o tempo. É neste ambiente inquietante que o promissor cineasta francês Clément Cogitoire intromete a ação do insondável Filhos de Ramsés, a partir desta semana nas salas. Isto depois de já ter recebido o prémio de Realização no passado festival LEFFEST, em novembro passado, bem como a consagração na Semana da Crítica em Cannes. O cineasta foi revelado na mesma secção paralela, em 2015, com o filme de estreia Ni le Ciel, ni la Terre, igualmente exibido, em 2022, no festival dirigido por Paulo Branco.

O título original Goutte d’Or (gota de ouro) refere-se ao quartier parisiense, de onde vem o realizador, em pleno 18º bairro, junto à Gare du Nord, separada pelo boulevard Barbés e a Porte de la Chapelle. O filme desenrola-se nesse emaranhado cosmopolita de comunidades magrebinas, africanas e asiáticas, além de parisienses e turistas, apelando a uma certa herança comunitária, onde o negócio do corpo se confunde com o tráfico e a contrafação e a religião com o charlatanismo.

Ramsés é um médium que conseguiu cimentar a sua credibilidade e preferência a outros profetas, sacerdotes e demais marabouts, graças aos seus dotes de vidente. Chamam-lhe feiticeiro, pela tremenda convicção que emana do seu olhar e a sugestão em evocar as almas que já partiram, submetendo uma comunidade de fiéis a um muito credível transe visual capaz de retribuir as suas esperanças, bem como as notas de três dígitos. Tudo vai bem até a sua estabilidade ser ameaçada pela entrada em cena – e, literalmente, na sua casa – de um grupo de perigosos adolescentes marroquinos sem eira nem beira. É dentro deste realismo social que o olhar de Ramsés (e também o próprio Cogitoire) nos recorda a ansiedade e as atribulações de Antonio, em Ladri di Biciclette, no clássico de 1948, de Vittorio De Sica. Ainda que Filhos de Ramsés siga o registo de thriller social, com pé a num inferno metafísico e a cabeça perdida num nervosismo bairrista.

Claro, temos de falar dos olhos de Karim, pois são eles o foco permanente do filme, como uma alternativa câmara subjectiva de Cogitoire, tal é a intensidade do magnetismo emanado da sua expressão visual. Como se através deles nos fosse permitido ver mais além, sentir algo indizível, na mirada arrebatadora do actor Karim Leklou, naquela que será porventura a melhor prestação masculina deste ano. A ela nos rendemos neste permanente jogo de espelhos ao mesmo tempo que nos ajuda a ver o lado mais realista do bairro ‘da gota de ouro’.

Se calhar, só assim se compreende esta travessia no caldeirão cosmopolita e multiétnico onde os adultos abandonam todas as esperanças – mesmo que conservem uma derradeira forma de redenção -, e as crianças aprendem a ser adultos durante a noite. É assim este imperativo cinematográfico sobre o trauma recalcado, devidamente enfeitiçado pelo olhar de Karim Leklou.

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