José Manuel Costa sobre ‘As Ilhas Encantadas’
A palavra sucesso não será, por certo, impositiva para descrever a receção ao filme português As Ilhas Encantadas, de Carlos Vilardebó, no festival Lumière, em Lyon (de 14 a 20 de outubro). Esta uma seção integrada em ‘tesouros e curiosidades’, dedicada a trabalhos recentes de restauro, em que se destaca a originalidade de realizadores e de obras que não chegaram a afirmar-se, mas que merecem essa visão distanciada. Por certo, adequada ao controverso e mal-amado filme que Vilardebó realizou em 1965 e que agora se sugere um desafio de autêntica redescoberta. Isto antes da exibição em diversas cidades portuguesas, no início do próximo ano, integrada no programa FILMar, conforme informou José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa e confirmou Tiago Bartolomeu Costa, coordenador do FILMar, onde se integra este e outros filmes sobre a temática do mar.
Desde logo, importará perceber o que se esconde além do brilho e encanto de Amália Rodrigues, cujo estatuto de estrela é inegável a quem vi(u)r o filme. E talvez daí tentar compreender a razão pela qual As Ilhas Encantadas passou ao lado de uma carreira bem mais digna. Quem sabe até se não teria fomentado novos rumos de um cinema talvez novo demais para abraçar propostas que escapavam ao cânone do momento.
Durante a apresentação do filme numa das salas do Pathé Bellecour, em Lyon, José Manuel Costa destacou no projeto a relevância do encontro entre três elementos fundamentais: desde logo, o produtor António da Cunha Telles, ainda no início do seu impulso da produção, embora já depois da estadia em Paris e de produzir em 1963 Os Verdes Anos, de Paulo Rocha e Belarmino, de Fernando Lopes, no ano seguinte, mas também a sua entrada no mercado da co-produção internacional; por outro lado, o cineasta Carlos Vilardebó, nascido em Portugal, filho de pai português e mãe francesa, embora com carreira assinalável em França, nomeadamente no território da curta metragem, até mesmo em colaboração com o produtor português e até com uma Palma de Ouro de Cannes no bolso por A Colher Egípcia, em 1960. Aliás, terá sido mesmo Vilardebó a sugerir o projeto a Cunha Telles, esta adaptação de Melville, do séc XIX, baseada numa coleção de histórias baseadas nas ilhas Galápagos, no Pacifico, como confirmou o diretor da Cinemateca; por fim, o terceiro elemento, a presença de Amália Rodrigues, seguramente, um efeito catalisador dos demais.
O contexto de co-produção acabou por ser favorável, desde logo, pela proximidade que tanto Cunha Telles como Vilardebó tinham à Pathé; o primeiro como seu representante em Portugal, e o segundo pela relação de trabalho das curtas que fazia para o gigante francês. Assim se possibilitou essa produção bastante onerosa, dominada por uma equipa maioritariamente francesa, embora com a assistência de realização repartida entre Jean Rabier (chefe operador em Cléo de 5 a 7, de Varda) e um jovem Acácio de Almeida, aqui num dos seus primeiros encargos (anos antes de O Cerco), e devidamente, alavancada com a proximidade que o produtor português tinha com as autoridades do arquipélago da Madeira.
Dos ecos da crítica da altura, a opinião é bastante severa e penalizadora, desde logo com o crítico Lauro António a sentenciar o filme como uma “desilusão foi total”, ou Soares da Costa a reduzi-lo a um “falhanço”, acentuado pela “ausência dramática” e de uma “lentidão procurada”. “Em Portugal, o filme foi completamente vaiado”, como confirma o próprio produtor Cunha Telles, numa entrevista publicada no catálogo do ciclo que a Cinemateca lhe dedicou em 2014. “Por exemplo, António Pedro Vasconcelos apedrejou o filme de todas as maneiras”, acrescentou. Embora reconheça que “o filme é melhor agora do que era na época”, rematando que “nessa altura, não entrava em linha nenhuma, nem no cinema clássico francês nem na Nouvelle Vague”. Isto porque “a Amália não cantava, embora ele (Carlos Vilardebó) tenha feito três canções para passarem como complemento”. No entanto, infelizmente, ausentes da versão final. No entanto, conforme confirmou Bartolomeu Costa, esses temas foram recentemente identificados pela Cinemateca nos arquivos da Pathé, que os encomendou, e serão apresentados em Portugal, aquando da estreia de As Ilhas Encantadas.
Bem diversa foi a opinião da imprensa francesa que suaviza o tom excessivamente pesado e literário desta expedição marinha (filmada no cenário deslumbrante da ilha de Porto Santo), assente na incomunicabilidade romântica entre as personagens vertida do texto de Herman Melville. Desde logo, entre o oficial da marinha da altura (Pierre Vaneck), a viúva Hunila (Amália), uma mulher abandonada numa ilha quando acompanhava o marido e o irmão numa expedição, e ainda o jovem marinheiro francês (Pierre Clementi, aqui pouco depois de participar em O Leopardo, de Visconti). Uma “lentidão” do discurso e representação que acaba por ser aproximada do distanciamento interpretativo tão particular em Robert Bresson.
Sob o encanto de Amália
Sim, temos de falar e Amália. Pois é tremenda e até surpreendente a presença de Amália Rodrigues nas Encantadas. No apogeu da sua fama, a fadista entrega-se à arte de representação de uma forma seguríssima. Mesmo sem cantar uma nota. Percebe-se que este é o filme certo para imaginar como estava ali a vedeta de cinema que nunca chegou a ser. Ela que, desde pequena, ambicionava ser a Sylvia Sidney ou a Greta Garbo. Os registos de arquivo concedem-lhe perto de uma dezena de créditos, embora quase sempre a explorar a persona de fadista e cantadeira.
Fizeram furor Capas Negras, de Armando de Miranda, e Fado, História de uma Cantadeira, de Perdição Queiroga, ambos de 1947, marcando uma sensacional estreia no cinema, a que se seguiria Vendaval Maravilhoso (1949). Ainda assim, seria o muito bem recebido Les Amants du Tage (1955), de Henri Verneuil, em particular o embalo do tema Barco Negro, a internacionalizar o seu canto, levando-a ao Olympia, em Paris, e ao mundo.
É essa presença muito forte na câmara que domina neste filme e “que nos faz pensar nas possibilidades goradas de uma carreira mais forte também no cinema”, como relatou José Manuel Costa na sessão. “E, por duas razões: a primeira, pela dedicação muito forte aos compromissos quer tinha como vedeta de fado e que a fazia viajar pelo mundo inteiro; a segunda, pela ausência de uma indústria de cinema em Portugal que lhe permitisse a sua afirmação como atriz.”
Na verdade, o que mais surpreende nos escribas de 1965 (sobretudo nos lusitanos) é uma certa secundarização da presença da estrela Amália. De alguma forma, ignorando a sua imposição corporal, a presença avassaladora do rosto e da intensidade do olhar. Digna, como refere parte da crítica francesa, de comparação à Maria Callas, de Medea, de Pasolini. E justa, sobretudo pela ausência de canto, como em ambas as prestações. Talvez fosse até essa a dimensão desejada do filme, “narrado como uma mise em abyme, de história dentro da história”, como descreve o diretor da Cinemateca, salientando esse dispositivo original de narração. Mesmo que considere “o filme algo deslocado do curso da produção portuguesa”.
“O que é extraordinário é que houve desejos dela ser atriz”, como relembra Tiago, recordando que Anthony Quinn quis fazer um filme com ela. “No entanto, ela disse-o em várias entrevistas que teve sempre muito medo. Embora tenha considerado que esta fora a sua melhor interpretação, aquela de que tinha mais orgulho”. Ainda assim, “talvez nenhum filme como este nos mostra a presença de uma Amália que poderia ter sido, também uma estrela no cinema, mas que não foi. Acho que a América se interessou por ela”, continua “mas enquanto cantora. Pois na América era fácil integrar o cantor e o ator. E Hollywood não perdia essa oportunidade. Ela foi atriz-cantora. Eventualmente, nesse contexto pudesse ter sido atriz dramática, mas talvez mais no contexto europeu. Somente. Aí acho que há qualquer coisa perdida”.
Será este As Ilhas Encantadas o seu ‘non’, questionámos após a sessão. Talvez, refere José Manuel Costa enquadrando-o dentro das “pontas constantemente perdidas do cinema português”. Pois, refere, “como “não há indústria, não há repetição. Portanto, nada se repete. E há em cada cineasta esse problema da falta da continuidade, mas ao mesmo tempo a falta de originalidade quase sempre perdida”, remata. E como se irá receber hoje esta Amália?, interrogamos. “Não sei. Mas acho que hoje as pessoas estão um bocado ávidas para descobrir coisas.” É essa a aventura. Seja como for, o efeito de As Ilhas Encantadas poderá talvez ser encarado, como sintetiza José Manuel Costa, como “uma pequena grande aventura do cinema português que é preciso descobrir”.
De referir que a cópia exibida foi o resultado de um restauro digital, executada no contexto específico do projeto internacional FILMar, concretizado pela Cineric Portugal, embora após depois de um restaurado e conservação em suporte original, efetuado em 2007.