Ouve-se a certa altura neste documentário do americano Rob Garver que “ler uma crítica dela era por vezes melhor do que ver o filme”. A frase é lisonjeira, embora bastante esclarecedora do efeito provocado pelas análises fílmicas de Pauline Kael, pensadas, ponderadas, carregadas de sentido e impregnadas de paixão, a maior parte publicadas semanalmente na revista New Yorker. Muitas delas recolhidas em livros, normalmente sem recusar o lado mais picante, como I Lost it At the Movies, Taking it All In ou Kiss Kiss Bang Bang.
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Talvez essa frase se possa aplicar também ao documentário What She Said: The Art of Pauline Kael, que ocupou vários anos de trabalho a Garver. Desde logo porque dificilmente poderá superar o tema que ocupa. Aí reside parte do seu lado encantatório fazendo-nos reviver as emoções de uma época em que o cinema resgatou o seu sentido, em particular nos anos 70. Por outro lado, sobressai também a componente sexista desta mulher sem papas na língua que ousou deixar a sua marca nessaa espécie de gentleman’s club que era o meio da crítica de cinema.
Uma coisa é certa, a sua opinião abriu espaço para carreiras no cinema, como foi o caso de Martin Scorsese, graças à crítica muito favorável a Mean Streets, tal como Steven Spielberg com a opinião a Sugarland Express ou ainda ao cinema de Brian De Palma. De uma forma diversa terá ‘empurrado’ também David Lean a um longo período sabático, pois o velho ‘brit’ assumiu ter-se ressentido pela opinião da carismática autora. Tarantino declara ainda num excerto que Kael definiu exatamente numa frase o cinema que ele queria fazer.
Crírica a crítica, tantas delas contestadas pelos seus autores, Pauline acabou por solidificar o seu estatuto e a afirmar aquilo a que se veio a chamar a ‘american new wave’. E ate mesmo o que assumiu a expressão de ‘Paulettes’, para ilustrar as imitações do seu estilo. O mesmo se diga da sua opinião, no meio do cinema americano rendendo-lhe essa ‘marca’ de prestígio que acabou por imprimir na atividade da crítica de cinema uma dimensão verdadeiramente artística, a mesma que muitos confundem com a banalidade dos polegares para cima ou para baixo.
Não esqueçamos que a sua atividade começou em nos muito masculinos e submissos anos 50. E, já agora, sem pejo de beliscar ‘vacas sagradas’, desde logo na sua primeira crítica a ‘desancar’ Charlie Chaplin em Luzes da Cidade (Limelight), e que intitulou de ‘Slimelight’. Ou então a subestimar o talento de Orson Welles na escrita do argumento de Citizen Kane ou a relativizar a qualidade de Shoah, o famoso filme de nove horas e meia sobre testemunhos do Holocausto, considerado unimemente um aobra-prima de Claude Lanzmann. Jerry Lewis lamenta em estilo de elogio que “até agora ela nunca disse nada de bom de mim, a megera”! Para logo acrescentar: “Mas é provavelmente a critica de cinema mais qualificada no mundo”. Também se rendeu a filmes polémicos, como O Último Tango em Paris, de Bertolucci ou a converter a má receção de Bonnie and Clyde em tremenda ovação.
Naturalmente, na sua escrita, sempre à mão, passada depois à máquina pela filha, transpirou sempre algum ego e talvez mesmo alguma vontade de assumir o lado oposto do consenso quanto mais não fosse para assumir o estatuto que começava a crescer. O que importa é que What She Said: The Art of Pauline Kael tem o condão de nos levar a uma era em que a opinião da crítica tinha o seu peso. Neste espírito seria interessante recuperar o papel que o eminente crítico francês André Bazin teve do lado de cá do Atlântico, tal como o legado que deixou, bem como a forma como a sua opinião evoluiu em cineastas que chegou a desprezar, como sucedeu, por exemplo, com Hitchcock. Mas isso dava um outro filme.