Classificação: ****
Na programação especial que a Leopardo Filmes dedica a Wim Wenders, em cópias restauradas pela Fundação Wim Wenders, exibe-se agora As Asas do Desejo, possivelmente o filme mais marcante do cineasta alemão, aclamado em todo o mundo e vencedor do prémio de realização em Cannes, em 1987, numa altura em que já passou pelas salas o magnífico O Estado das Coisas, de 1982. Convém talvez precisar que antes de Asas Wenders já tinha havia feito o documentário Tokyo-Ga, dedicado a Ozu, e sobretudo Paris, Texas, de 1984, vencedor da Palma de Ouro, e cuja reposição está prevista para 16 de fevereiro. Já que aqui estamos, refira-se também uma outra reprise, a de A Mulher Canhota, de 1978, prevista para 9 de fevereiro, seguramente um filme importante para acompanhar com o que agora estreia, já que se trata da estreia do escritor Peter Handke, autor do guião de Asas.
Se é verdade que Wenders regressou a Cannes, agora com redobrado estatuto de culto, é ainda mais marcante este seu regresso a Berlim, uma cidade agonizante fotografada com o contraste marcado de Henri Alekan, responsável, por exemplo, pela fotografia de A Bela e o Monstro, de Cocteau, em 1946. É precisamente aqui que o cineasta alemão nos eleva à altura dos anjos para captar o tecido urbano de uma urbe ainda apertada pelo incompreensível cinto de betão que a dividia em duas partes. Muro esse que estaria prestes a ser derrubado, em 89, e que dividia um povo amaldiçoado e aturdido, descrito pela narrativa circular de Peter Handke a gritar por um novo olhar – a criança, quando criança, não tinha opinião sobre nada. Sim, este é um filme sobre uma Europa unida antes da queda do Muro.
O exercício narrativo contemplativo é amplamente conseguido ao tricotar a história ancestral dos anjos, passado pela memória da destruição de Berlim e a presente divisão geográfica, intrometendo ainda a história da rodagem de um filme – Wenders aparece como o assistente de realização (no filme verdadeiro é Claire Denis) – e a possibilidade de uma trama defendida pela personagem picaresca de Colombo obviamente fundida na pele de Peter Falk. No alto, os anjos observam e fazem o que podem pelos dramas e dilemas terrenos.
Enquanto recordam os primórdios do tempo, Damiel (Bruno Ganz) escuta e questiona-se sobre as possibilidades da vida humana, ansiando mesmo poder sentir o calor de um aperto de mão ou até o sabor do café sugerido por Falk, Colombo (não te vejo, mas sei que estás aí), acabando mesmo por ceder à mortalidade pela possibilidade da descoberta do amor por uma trapezista (Solveig Dommartin) com ‘asas de galinha’ num circo falido, o circo Alekan, em homenagem ao DdF; Cassiel (Otto Sander) é bem mais hesitante sobre essa possibilidade terrena, no seu deambular pela cidade tocando nos transeuntes, escutando o pensamento cinzento como a cidade.
No entanto, a cor irá tingindo essas sombras, à medida que a vida se irá sobrepondo, primeiros em pequenos flashes, a este pesadelo vivido por anjos. Estará já em todo o seu esplendor com a passagem da equipa de Wenders num concerto de Nick Cave. Um momento forte, ainda que algo desfasado e com o sabor a promoção do artista, com uma plateia entregue às vagas ondulantes de The Carny. É também aqui quando se unem as asas do desejo do anjo pela trapezista.
Quase três décadas depois, Asas dos Desejo ganhou já o estatuto de clássico, e ficou pouco marcado pelo tempo. Bem ao contrário do remake A Cidade dos Anjos, feito dez anos depois, com Nick Cage e Meg Ryan a reviverem o romance etéreo. O fosso da História é implacável quando nos mostra o fosso aberto no coração de uma Berlim dividida a motivar o desconsolo do ator veterano Curt Bois (ele que entrou em Casablanca), aqui a despedir-se no seu derradeiro filme, ao interrogar-se, cansado, num sofá no meio de terra e lama “é isto a Potsdamer Platz?”, hoje o coração do festival de Berlim.