Há no início destes ‘Fantasmas de Ismael’ uma curiosa referência à pintura de Jackson Pollock, em que um jornalista soviético argumentava o lado ‘figurativo’ do pintor americano de via fortemente expressionista. É que segundo o russo, existiam diversos quadros destro daquele emaranhado de formas. Seguramente uma pista, ou manuel de instruções, para entrar dentro deste filme, onde fantasmas regressam dos mortos, diplomatas são confrontados com decisões eventos de verdadeiros filmes de espionagem e um realizador procura dar forma ao turbilhão de ideias difusas.
Arnaud Desplechin, habitué do concurso da Palma de Ouro, desde La Sentinelle, em 1992, apesar do seu anterior filme, Três Recordações da Minha Juventude, ter sido relegado para a secção paralela da Quinzena dos Realizadores, com um bruá de protesto da imprensa, regressa a Cannes, mas para a sessão de abertura da 70ª edição do festival. Para quem admirou o filme – pois a receção da sessão de imprensa não foi unânime – seria uma boa escolha com um filme francês que esboça uma espécie de quadro polockiano das muitas referências e reverências de Desplechin, numa espécie de filme mosaico; para quem não gostou, fica um exercício “auto complacente”, onde nem sequer a presença de Marion Cotillard o salva.
É claro que o que sobra em ambição desmedida em colocar a filigrana de quadros e referências (e reverências) acaba por criar também um filme bem mais modesto em que as várias personagens desta espécie de mosaico parecem procurar o seu corpo, pois permanecem desgarrados num mundo em que não pertencem verdadeiramente. Como Marion Cotillard, regressada do mundo dos vivos para alterar a já de si turbulenta vida do cineasta irascível (Mathieu Almaric, que vem a Cannes também com o seu novo projeto como realizador, Barbara, na secção Un Certain Regard), como também a tímida astrofísica defendida por Charlotte Gainsbourg ou até o diplomata “por correspondência” com o à vontade de Louis Garrel, que protagoniza um filme dentro do filme.
Quando descreveu o projeto a um amigo, Arnaud disse que tinha “inventado uma pilha de retratos de ficção que estilhaçava no ecrã”. São filmes, são romances, é um bom pedaço de história (ou histórias), mas não há propriamente esse estilhaçar no ecrã, mas antes um filme interessante, um filme dentro de filme, como uma boneca russa, que se fixa pela paciência e continuidade do olhar. Se é ou não como Pollock, isso é outra coisa.
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