O apelo desta incursão de Jane Campion no universo do western já vem de longe. Pelo menos, desde a sua passagem em Veneza, em que competiu para o Leão de Ouro. Ganharia depois novas vidas e promessas de revelação, em sucessivos convites para a realizadora australiana aparecer em festivais que lhe renderam homenagens e retrospectivas. Não era para menos, já que miss Campion, a campeã feminina a ganhar a primeira Palma de Ouro em Cannes, não mostrava um filme novo há uma dúzia de anos (mais concretamente desde Bright Star – Estrela Cintilante, em 2009). Foi San Sebastian, escassas semanas depois de Veneza, onde descobrimos ‘o poder deste cão’ no último filme que vimos no festival basco. E logo se instalou uma espécie de mixed feelings, talvez justificados pela excessiva expectativa.
O Poder do Cão passaria entretanto no LEFFEST, com a devida retrospectiva e, depois ainda, no Festival Lumière, em Lyon, sendo Jane Campion uma das convidadas de honra (de resto, um dos rostos do festival e o rosto do catálogo). A título de revisão para o ano de cinema que passou voltámos a Dog (na cópia da luxuosa edição enviada pela Netflix para efeitos de consideração de prémios do cinema). Contudo, mesmo uma segunda visão não apagou a sensação do incómodo inicial. Embora não se tenha repercutido da diferença de escala entre o ecrã da sala de cinema e o da sala de estar.
Um vez mais, sentimo-nos próximos do ambiente do género. Como que aceitando uma rendição à lenta contemplação do tempo que passa, algures a invocar os idos do western clássico. De resto, percebe-se que esta lá o Red River, do Hawks, logo no início, bem como A Desaparecida, do Ford, nos inúmeros planos de dentro para o exterior que acompanham o filme. Mesmo em 1925, na região de Montana, é difícil esquecer a ontologia do género. De resto, sublinhada por as várias evocações à figura do Bronco Henry, uma espécie alter ego de Phil. É a modernidade que chega, com o automóvel a ameaçar o cavalo, tal como a rudeza de modos é superada por alguma delicadeza e sofisticação.
Não demorou muito para perceber como Jane Campion se mostra bem menos à vontade em acompanhar uma personagem masculina. Na verdade, três. Desde logo, a rudeza de Phil, o legítimo herdeiro do Velho Oeste, talvez também no papel mais rude de Benedict Cumberbatch, no qual se esforça como pode; como o seu contraponto, no irmão mais civilizado George, defendido por Jesse Plemons. De resto, Phil refere mesmo a comparação a Rómulo e Remo, fundadores de Roma. Por outro lado, a juventude (o futuro!) na delicadeza de Peter (Kodi Smit-McPhee), um rapaz ainda sem uma definição clara da sua sexualidade. Ele que se irá confrontar e depois entender com Phil, até mesmo para se descobrir e provocar essa descoberta no adulto. O elemento feminino menos claro, com uma Kirsten Dunst a gerir a emoção programada da sua Rose desencantada com a vida e empurrada para o refúgio no álcool.
O problema de O Poder do Cão é que todas estas personagens são claras, sem nuances, espessura ou espaço de revelação. Ou então, quando essa relação acontece, a câmara já nos descreveu o que vemos. E assim ficamos (muito) mais longe da densidade psicológica das personagens femininas que compõem a sua filmografia. Um galeria imensa, desde Sweetie (1989) a Bright Star (2009), deixando pelo meio a complexidade das mulheres em Um Anjo à Minha Mesa (1990), Piano (1993), Retrato de Uma Senhora (1996) ou In the Cut – Atracção Perigosa (2003). Não é que não exista essa dimensão interior em O Poder do Cão. Ela existe, bem mais na ligação entre Phil e Peter, desde logo na sexualidade que se manifesta de forma adversa. O problema, contudo, é o cinema. Na verdade, o que vemos à frente da câmara. Porque o que vemos nos aparece sempre de uma forma demonstrativa, descrita em imagens, deixando mais órfãs as personagens.
É como se escuta na cena em que se percebe o sentido do título. Logo no início, um insondável Phil olha para os montes e é questionado: “o que vês lá em cima?” Ao que ele responde: “Não há nada se não consegues ver”. É precisamente esse o problema de Power of the Dog, na constante missão em descrever o que se vê. Mesmo na cena fulcral quando se forma a sombra da figura do cão desenhada no monte. Talvez o deslumbramento da natureza – de entregar um western – tenha esbatido a filigrana psicológica que cria personagens e nos liga a elas. Porque se não as conseguimos ver, é porque se calhar também não existem.