Domingo, Outubro 13, 2024
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Sreemoyee Singh no MDOC: “Considero-me uma realizadora acidental”

A jovem cineasta indiana Sreemoyee Singh observa a realidade dos exilados no Irão em And, Towards Happy Alleys.

Sreemoyee Singh não gosta de perder tempo. Aos 21 anos, quando estava a fazer o seu mestrado, durante um módulo de cinema iraniano, apaixona-se pelo cinema persa. E logo pensou que o seu passo seguinte, o doutoramento, passaria pelo Irão. Um ano depois, em 2015, inicia o seu PhD, e vai pela primeira vez ao Irão. Tem tem agora 24 anos. E o resultado da sua investigação de sete anos é And, Towards Happy Alleys, um filme tocante e arrojado descoberto em Melgaço, no  MDOC, o Festival Internacional de Documentário de Melgaço, que decorreu de 31 de Julho a 6 de Agosto. Já depois da estreia mundial, em Fevereiro, na secção Panorama Documente da Berlinale.

And, Towards Happy Alleys foi mesmo um dos melhores filmes apresentados no MDOC, ainda que fora dos prémios. Aí aborda-se a temática do exílio pós-revolucionário, em particular com o fico nos cineastas Jafar Panahi e Mohammad Shirvani, o ator Farhad Kheradmand (E a Vida ContinuaAtravés das Oliveiras, de Kiarostami), bem como a advogada Nasrin Sotudeh, activista dos direitos humanos, revelando a situação precária em que vivem aqueles que ousam criticam o regime patriarcal, defrontando-se com a prisão e a impossibilidade de exercer a sua profissão. Um filme arrebatador que nos toca em profundidade.

‘And, Towards Happy Alleys’

“Fui a primeira vez ai Irão, em 2015”, revela-nos pouco depois de nos deixar encantado com a sessão no festival minhoto. Levava no bolso o equivalente a, aproximadamente, 2000€, gastando uma média de 15€ por dia. “Continuei a ir e a vir. Até 2019.” Só que antes já se tinha deixado contaminar pela doçura da poesia de Forough Farrokhzad (1934-1967), também ela cineasta, embora desaparecida cedo demais, apesar do seu (único) filme The House is Black (1962) ser ainda considerado uma referência incontornável no cinema iraniano. E não só. Só que Sreemoyee queria ler a poesia de Forough em farsi. “Ler a poesia e ver os filmes inspirou-me.” Por isso aprendeu a língua – que fala de forma fluente – em apenas três meses. Diz-nos ela, na nossa agradável conserva em Melgaço, que foi uma aprendizagem facilitada pela proximidade das raízes que a língua Bengali e hindu têm com o farsi. Além de Forough, a cineasta reconhece a influência dos estudos de cinema, e o trabalho de autores como, Agnés Varda, que considera muito próxima de Forough, mas também Jean Renoir. No fundo, algo que descobriu quando já estava a dar aulas de Teoria de Cinema. E até do documentário de Chris Marker. “Mas que só descobri depois de fazer o filme.”

Forough Farrokhzad

“Eu ainda sinto a presença da Forough”, assume. “Apesar de ter falecido ainda nos anos 60. E percebe-se que no Irão o seu legado continua muito vivo. Ainda hoje muitas mulheres iranianas sentem a sua influência, porque se permitem, enquanto mulheres, a sentir o desejo. Sentir que existe esse espaço. Eu tinha 21 anos quando a conheci e senti isso mesmo. Então, a Forough e esses cineastas foram a minha inspiração. Por isso quis segui-los.”

Essa foi também a porta para as outras latitudes da casa da cinematografia iraniana. As referências são, claro, Ebrahim Golestan, Abbas, Kiarostami, Moshen Makhmalbaf ou Bahman Ghoubadi, entre tantos outros. Embora o olhar da cineasta se materialize na comunidade de iranianos em luta pelos seus direitos no dia-a-dia. Como uma forma de reivindicação para se exprimir. “O meu filme é sobre isso mesmo: sobre a liberdade para nos exprimirmos, a liberdade no reino do pensamento, no ensino, do viver o dia-a-dia. Porque cada dia é uma jornada de luta. Foi o que tentei captar no filme. E perceber como a liberdade que nos é dada como garantida a eles é-lhes retirada..” Este foi um projecto realizado ao longo de sete anos, onde se documenta o dia a dia da rebelião das mulheres, documentando mesmo diversos atos extremos de mulheres. E relatar que foi isso que levou ao momento que a sociedade iraniana vive hoje em dia.

Jafar Panahi em ‘And, Towards Happy Alleys’

Como sabia que o Panahi estava no Irão, pois não pode sair depois da sua sentença de 21 anos sem poder sair do país, decidiu ir ao seu encontro. Felizmente com a ajuda de amigos que a relacionaram com jornalistas e amigos dele. Foi isso que lhe permitiu aproximar-me dele. Talvez por isso, este seja, de alguma forma também, um filme em que se sente a presença do cinema de Panahi. Pois o que vemos é Panahi a conduzir o seu carro pelas ruas de Teerão, em animada conversa com Sreemoyee. De certa forma, uma reencarnação do sei filme, precisamente de 2015, intitulado Taxi, como forma de contornar a sua proibição de fazer filmes, optando por captar as mudanças na cidade através dos passageiros que transporta.

Por isso, quando lhe colocamos a questão de filmar no carro, a cineasta confirma que “é uma necessidade. Porque, se não, onde iremos filmar? “O Panahi sente-se bem no carro, porque mesmo dentro de casa existe uma certa dose de controlo. A sua casa normalmente tem muita gente, por isso decidimos filmar no carro. Por isso mesmo é normal vermos no recente cinema iraniano a ação passada dentro de automóveis em movimento. “Porque o Irão não é um ligar seguro”. Pois no mundo exterior não podem ser eles próprios. De acordo com o código do Mandado da Modéstia, instaurado após a revolução de 1979, as mulheres têm de usar o véu mesmo dentro de casa. “Os cineastas da nova vaga sentiram isso como algo pouco natural, porque eram filmes baseados no realismo,” explica-nos. “Por isso não podiam filmar dentro de portas. Apenas nas ruas. Por isso decidiram filmar dentro de carros. Nesse sentido, o carro tornou-se esse mundo intermédio entre o pessoal e o mundo vigiado em que as pessoas vivem.”

A certa altura, no filme, depois de acompanhar Panahi a um aloja, este pede a Sremoyee para cantar. Um momento algo insólito, mas que haveria de ser converter em algo recorrente durante as apresentações do seu filme. “Para mim, cantar é algo bastante confortável,” garante, “pois canto desde os meus 4 anos. Já me vi diversas vezes em situações sem que a minha família me pede para cantar em situações diversas.” Será essa uma forma de expressar a liberdade, arriscamos. “É interessante que coloque assim a estão, porque na Índia sempre me senti livre a cantar. É uma forma de expressão. Mas mais tarde, sim, fez-me sentir mais livre. Mas no Irão as mulheres não podem fazer o que eu posso fazer. Só percebi isso quendo fui ao Irão. Acho que o Panahi gostava de me ouvir porque não está habituado a ouvir mulheres a cantar.”

E será que cantar e realizar será também uma extensão da liberdade criativa? É aí que Sreemoyee revela a naturalidade com que encara a vida e a criação. Como uma espécie de osmose. “Considero-me uma realizadora acidental. Como fiz um filme, as pessoas acham que sou cineasta; no entanto, a música é uma forma de expressão essencial para mim. Tal como a escrita, pois escrevia muito antes de fazer cinema. Foi ao fazer os meus estudos que me apercebi que o cinema engloba tudo isso. Tudo faz sentido junto. Por isso, no filme ouvem-me cantar atrás da câmara, mas não me vêem.” E foi assim que ouvimos a cineasta-poeta-autora-cantora atender ao desejo de muitos e seduzir-nos em várias ocasiões com o tema que canta no filme.

Algo que explica com muito naturalidade: “Fazer um documentário não é apenas retirar algo da realidade, é também alimentar algo de volta. Quem está a ser filmado e quem filma. Não podemos filmar as histórias das outras pessoas e não dar nada em troca. No Irão cozinhava para os meus amigos e cantava. Era isso que eu dava por tudo aquilo que me davam. E é isso que quebra as paredes e facilita a comunicação. Por isso quando cantei o tema, algo que fiz em várias ocasiões, tudo começou a fazer sentido para mim. Por isso, entendi que era natural que cantasse para as pessoas. É quase como estar apaixonada.” Forough, uma vez mais? “Sim, é a emoção dentro da sociedade que queremos partilhar. Foi isso que fiz, partilhei as minhas canções e as pessoas gostaram.”

Apesar do que se passa nas ruas, de resto, testemunhado no filme. Com mulheres que decidem retirar o hijab e gritar a sua liberdade. Por vezes, com resultados violentos. Apesar também dos muitos protestos. Sobretudo depois da morte da jovem surda, Mahsa Amini, de 22 anos, depois de ser espancada brutalmente pela polícia. “Está muita coisa a acontecer. Vai fazer um ano que morreu a Mahsa. Há muitas mulheres que estão fartas e protestam abertamente: seja a baixar o véu ou a falar abertamente. Ganharam a coragem. São tantas pessoas que o regime já não consegue regular tudo.” É evidente que a cineasta aprendeu muito com o Irão (e nos com o seu maravilhoso filme). “Foi um país e uma cultura que me deu mundo.” É isso que deseja retribuir de volta. “É como o cinema que é algo que temos de retribuir pelo que recebemos.”

Por isso, quando pensa no seu próximo projeto. defende que “o cinema não é só observar e dar algo de volta. É também um aforma de introspeção de nós próprios e de questionamento. Sinto que o meu próximo projeto será nesse sentido. Usando música e poesia, com certeza. Pois tudo isso é uma extensão de mim própria.”

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