J’Accuse é um momento sublime de cinema que nos permite auscultar de uma forma muito próxima a pulsação dos dias de hoje, ainda que a partir de um eco que remonta ao final do século XIX. Curiosamente, a 1895, o ano do nascimento do cinema. É claro que sabemos que o novo filme de Roman Polanski, agora em estreia nacional depois do debute mundial no festival de Veneza, onde venceu o Prémio do Júri, tem um alcance bem mais prolongado que o tão célebre affaire Dreyfus. Provavelmente tocando o cineasta de uma forma mais particular, mais pessoal, ainda que em momento nenhum das mais de duas horas intensas de filme se pressinta sequer uma referência indireta ao seu affaire por demais comentado, e em que pende na justiça americana um caso de abuso sexual com uma menor desde 1977. Ainda que todo esse coro tal não tenha impedido o filme de ser nomeado para 12 Césars, os mais importantes prémios do cinema francês.
Foi mesmo nessa famosa carta aberta assinada pelo famoso escritor Émile Zola intitulada J’Accuse e endereçada ao presidente francês que Robert Harris se inspirou para o seu livro O Oficial e Espião, editado em Portugal pela Presença, bem como no guião co-assinado por Roman Polanski. Na respeitabilidade dos seus 86 anos, Polanski serve-se da carga desse famoso “erro judiciário” embora deixando-nos livres para daí retirar eventuais e mais amplas leituras. O estilo é de um rigor estético férreo, quase de perfil militar, conjugando o irrepreensível fresco de época, com o perfil do processo judicial, o sublinhado dos valores fundamentais e até uma pueril intriga amorosa. É então a partir dessa releitura que o cineasta parece assinalar a importância de rever os valores de verdade e justiça aí vertidos.
Logo nos primeiros segundos da primorosa sequência inicial somos informados de que todos os elementos e personagens do filme são verdadeiros. É num ambiente de parada militar que é apresentado o oficial Alfred Dreyfus, interpretado com total entrega por Louis Garrel, degradado e despojado das suas insígnias militares, ao mesmo tempo que é acusado de alta traição, por um crime de espionagem.
O coronel Picquart, defendido por um impecável Jean Dujardin, é tão convincente no seu inicial desdém anti-semita, quando descreve Dreyfus, como um alfaiate judeu que chora o ouro perdido, como no acérrimo defensor da sua inocência depois de ser promovido e indicado para a sua investigação. A mesma atitude quando, Esterhazy, o verdadeiro espião para o exército alemão, era protegido por as mais altas patentes militares, muitas delas interpretadas por atores pertencentes à Commedie Française, a companhia de teatro pública permanente, a mais antiga do mundo (cuja fundação precede mesmo a Revolução Francesa). Uma palavra ainda para Emmanuelle Seigner, mulher de Polanski, aqui num curto, mas expressivo, momento romântico com Picquart.
Naturalmente, Polanski trilha um terreno que conhece. Ele que fugiu em 1937 com os pais, apenas com quatro anos, de Paris para Cracóvia, acabando depois por ser a família ser deportada pelas tropas nazis para o gueto local, onde tentou sobreviver mesmo depois da morte dos pais no Holocausto, cuja comemoração do 75º aniversário da Libertação ocorreu ainda esta semana.
De resto, foi também a possibilidade da revisão de J’Accuse, depois da sua descoberta em Paris na semana da estreia francesa, que nos permitiu recuperar novos detalhes, particular referências históricas e enquadrá-las com o estado da arte na altura, com o estado da belle epóque, um recorte artístico tão bem refletido do can can, no melhor estilo Toulouse-Lautrec, do impressionismo em alguns momentos dejeuner sur l’herbe, na bela cena do Louvre em que se confunde o valor de uma cópia com uma falsificação. Interessou também perceber como dessa auscultação social resulta ainda que não estamos assim tão distantes de algumas injustiças e abusos sociais e xenófobos cometidos em nome de realidades instauradas, mesmo que vigentes num populismo no século XIX.
Dito isto, importa sublinhar que J’Accuse será talvez o filme mais importante estreado este ano, embora já com a ressonância obtida (e o o barulho gerado) desde que foi exibido em Veneza. No entanto, o facto de constantemente esta obra de cinema (e também de arte, porque é disso que se trata) ser relativizado prova que o ‘caso Polanski’ continua vivo e a merecer a importância de um apuramento de verdade. A esse respeito parecem premonitórias no filme as palavras do General Gonse ao procurar demover Picquard do caso quando este lhe apresentava as provas da inocência de Dreyfus, argumentando: “Não quero outro affaireDreyfus!” Ao que ele responde “Não é outro general, é o mesmo!” Na verdade. Ou seja, o caso não está encerrado.