Sábado, Abril 27, 2024
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Chile 1976: entre a repressão e a banalidade do quotidiano

É na opção de um ponto de vista de classe exterior à convulsão política que Chile 1976, em estreia nas salas de cinema portuguesas esta quinta-feira, reclama a sua individualidade e, até, urgência.

Duas notas prévias, a propósito de Chile 1976, exibido em Cannes há precisamente um ano, na auspiciosa primeira experiência no longo formato da atriz Manuela Martelli que decidiu observar a cena atrás da câmara. A primeira, é que se constata uma enorme maturidade cinematográfica e narrativa, no olhar desta jovem de 40 anos, sobre a realidade política do seu país, ainda por cima numa altura em que não era ainda nascida; a segunda, é a definição e afirmação de uma protagonista, não como uma mulher revolucionária, mas antes uma burguesa que, aos poucos, durante aquele ano trágico de repressão, desaparecimentos e tortura, sente nascer dentro de si a agonia. É precisamente nessa subtil opção de um ponto de vista de classe exterior à convulsão política que Chile 1976 reclama a sua individualidade e, até, urgência.

Somos introduzidos no mundo burguês da arquiteta Carmen (uma tremenda prestação de Aline Küppenheim), seguindo em off a sua voz pausada, ao contemplar as possibilidades do acerto exato da cor rosa para a renovação da pintura da sua casa, na capital Santiago. Talvez um pouco mais de azul se aproxime ao tom rosa escuro do pôr-do-sol em Veneza que admira num guia de viagem. No exato momento em que é adicionado ao rosa um pouco mais de azul, escuta-se – sempre com a câmara no balde de tinta a mudar de cor -, um carro que trava, seguido pelos gritos da mulher que é levada. Da vareta na mão do comerciante irão cair, caprichosamente, em slow motion, algumas pingas de rosa sobre o sapatinho da senhora surpreendida com o sucedido. Como que a deixar a sua marca em Carmen.

Apesar do espanto, só ela desconhece um tipo de intervenção já habitual para os locais. “É a terceira vez que isto acontece aqui na rua”, ouve-se. Aliás, o conceito cromático será recorrente na narrativa que Martelli escreveu em parceria com Alejandra Moffat, como que a segredar-nos que esta será uma aproximação diferente à ditadura de Augusto Pinochet. Passaram até três anos após o golpe que depôs Salvador Allende, o presidente democraticamente eleito e orquestrador das políticas sociais que prometera durante a campanha. Políticas mal recebidas pela classe conservadora e, em particular, pelo governo americano que promoveu a queda do seu governo e o apoio à imposição da ditadura militar. Esse é o pano de fundo que Martelli dará como assumido, interessando-se mais pelo acordar gradual desta mulher empenhada na sua missão decorativa, na distração dos seus netos e até nas conversas informais, embaladas com um copo de uísque e alguns comprimidos, com o marido (Alejandro Goic) e amigos dele. Por certo, muito mais a par dos segredos de um estado munido de uma política de rolo compressor. Mas também é ela que se deixa levar pelo ímpeto humanitário ao tratar, em segredo, um jovem foragido, a pedido de um padre. Apesar de tudo, é como se Carmen observasse esta realidade no cimo de uma varanda com vista para o mundo real.

É sempre harmoniosa a forma como Martelli conjuga a narrativa, o tempo, a paleta cromática e a interioridade das personagens, entrelaçando as cenas com uma certa casualidade em que se reconhece veracidade. Foi também esta entrega a uma banalidade quotidiana, sem causas, que sentimos uma aproximação ao dia-a-dia malsão de Jeanne Dielman, de Chantal Akerman, justamente de 1975 (e hoje considerado pela revista Sight and Sound, o melhor filme de sempre).

Chile 1976 é um filme que toca temas sérios demais, mas sem nunca abdicar de uma certa leveza, mesmo que se sinta a constante inquietude da banda sonora eletrónica a cargo da brasileira Mariá Portugal. E que nos deixa o arrepio de pensar numa mulher que conheceu o outro lado, mas que terá de viver com alguma cumplicidade com o regime. Sem nunca saber quando a náusea irá aparecer.

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